16 novembro, 2015

O »MONDE DIPLOMATIQUE» E OS »INTELECTUAIS»
(Resposta a um inquérito)

O «Monde Diplomatique» começou a fazer, na edição portuguesa de Novembro, um inquérito a propósito da velha questão do papel ou não papel do intelectual no mundo de hoje.
Transcrevo aqui as perguntas colocadas pelo jornal e a minha resposta.


«Inquérito»
A noção de «intelectual» surgiu historicamente, se quisermos conservar o «caso Dreyfus» como ponto de referência, com a intervenção pública de escritores, cientistas, artistas e outros criadores culturais orientada para a preservação da integridade cívica e inspirada pela proclamação de princípios «humanistas» de pretensa universalidade. No entanto, logo então, e constantemente entretanto, surgiram vozes no interior da própria comunidade «intelectual» que consideravam essas intervenções públicas como perigosas transigências para com o século e, como tais, como abusivas pretensões ao estatuto de actor político, que não se deveria nunca confundir com as tarefas do «intelecto». Não reduzindo a esfera de possibilidade de intervenção pública aos detentores de credenciais académicas ou aos «profissionais» do universo do «espírito», concepções restritivas (e mesmo elitistas) que emergem de uma sociedade muito estratificada, interessa aqui sobretudo pensar como se relaciona a posse de atributos culturais com o exercício da intervenção pública. Recuperando a tradição portuguesa de publicações como «Seara Nova» ou «República», o Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) vai sondar um variegado conjunto de escritores, cientistas, artistas e outros criadores culturais como solução para mapear – e não: prescrever – o ponto da situação entre o universo cultural português. A todos os inquiridos será submetido o mesmo «Inquérito»:
1. Faz sentido pensar hoje em «intelectuais» que intervenham civicamente em nome de uma «causa» ou «missão»?

2. Deverão eles, pelo contrário, resistir a pronunciar-se publicamente sobre temas de interesse público ou cívico?
Resposta:

3. Num ou noutro caso, o que podem trazer os «intelectuais» para a sociedade do seu tempo? 


A minha resposta:

Prefiro responder de uma só vez às três perguntas do inquérito, já que elas se articulam e sugerem também uma resposta articulada e única.
Essa resposta pressupõe uma reavaliação, ou substituição, da noção de «intelectual». O termo está datado, e remete para um tipo de situação político-social que foi, grosso modo, a do século XX, mas que se alterou radicalmente neste nosso século. A minha tese é a de que se esgotou o modelo secular (e francês, desde Voltaire) do intelectual crítico e interventivo que actua no mesmo plano dos poderes e com uma arma exclusiva – a da palavra e da sua capacidade argumentativa –, tornando-se com isso cada vez mais inócuo, e a sua acção restrita, num mundo como o nosso, em que essa arma perdeu visivelmente a sua força.
Mas o fim deste modelo não significa o fim de uma figura (ou melhor, de figuras de diversos tipos) com funções igualmente críticas e de resistência (porventura menos visíveis, dada a sua proliferação) adaptadas à nova situação de mobilidade, de globalização e de opacidade dos poderes. Instalou-se assim o que vejo como uma anarquia criativa interveniente, em grande parte de costas voltadas para os poderes, mas sem os perder de vista (por isso eles não sabem muito bem o que fazer com ela!). Uma diversidade de forças nem sempre pensantes, mas altamente críticas e mesmo subversivas, de recorte mais «performativo» do que filosófico. O «intelectual» não é já a figura destacada – e tantas vezes isolada, pregando no deserto – do pensador crítico do sistema, ou a consciência moral da nação. Hoje, as formas de actuação na arena política e social pluralizaram-se, entraram há décadas num quase imperceptível processo de deslocamento que levou a que a intervenção não se dê necessariamente no plano do dizer (da força perdida da palavra), mas bastante mais no plano do mostrar e do fazer. Não há propriamente uma luminária pensante, que fala a partir de um lugar apesar de tudo privilegiado, existem antes – como também viram Pasolini há décadas, e Didi-Huberman hoje – muitos pirilampos que se acendem (e apagam) sob as mais diversas formas, nas artes e no teatro ou no cinema, na performance e na manifestação pública, ela própria em momentos mais felizes transformada em obra de arte viva. Sem sentido de «missão», mas certamente com vontade de contestação, com motivações próximas mais à vista do que as grandes «causas» abstractas de pretensão universal – tudo também mais soft, é claro, do que nos duros regimes totalitários do século XX (pelo menos na Europa).


O intelectual de recorte clássico, ainda sartriano (ou, de um ponto de vista ainda mais «essencialista», o «intelectual orgânico» de Antonio Gramsci e das suas Cartas da Prisão), perdeu o pé no mundo de hoje, porque o mundo se transformou e de certo modo o «dispensou»
enquanto defensor de «causas» (por vezes com algo de patético) que jogava no campo do adversário, estando muitas vezes condenado a perder. A inflexão que se deu é algo paradoxal: encontramo-nos hoje numa situação em que, apesar de todos os padrões estarem mais uniformizados e globalizados do que nunca – ou por isso mesmo! –, a diversidade de formas de intervenção é imensa e constante. Entrámos num processo que deixou para trás o intelectual bem pensante para entrar na fase de transição e exploratória de uma cultura que sofreu uma inflexão do político (depois do Maio de 68, da revolução portuguesa ou da queda / degeneração dos impérios soviético e chinês) para o estético (em sentido muito amplo), sem no entanto aliar a essas formas de actuação estético-críticas uma ética que as fundamente. Isso não está ainda à vista neste momento em que o movimento do mundo parece processar-se (para usar termos do filósofo Michel Serres) entre a rejeição do «formato» por grupos minoritários e o excesso de «invenção» que faz deste tempo um dos mais dinâmicos da História.
Diferentemente do intelectual singular e «forte» (tantas vezes com visões apocalípticas), confrontado com a violência explícita de Estados autoritários ou universos concentracionários, o que os «pirilampos» activos de hoje fazem é, como diria Walter Benjamin, «organizar o pessimismo», intervindo por via «imagética», isto é, viva e sensível, muitas vezes irónica e satírica, numa «partilha» de papéis contestatários dos muitos que actuam no espaço público. Com plena consciência de que não podemos querer apontar vias únicas de salvação, dizendo para onde vamos, mas tão somente tentar entender onde estamos. E agir. E tornar evidentes as situações sem inferir daí qualquer moral.
Um filósofo como Jacques Rancière poderia aqui servir de referência. Para este pensador, uma obra de arte funciona hoje muitas vezes como «manifesto mudo»: está aí e fala. Ao comentar o filme de Pedro Costa O Quarto de Vanda, Rancière destaca nesse filme o gesto da recusa de intervir como algo que nos coloca na presença do que é político pelo simples facto de nos mostrar a sua força. Acabámos de ter, nas últimas semanas, um outro exemplo disto no caso da greve de fome de Luaty Beirão em Luanda. O que aconteceu na fase histórica mais recente, diria eu, evocando o conhecido poema de Kavafis, foi a barbarização do intelectual, a sua necessária dessacralização. É uma forma daquilo a que Benjamin chamou «barbárie positiva», em que o discursivo dá lugar ao performativo, a retórica à acção, o pensamento abstracto a formas de arte ou de pensamento vivos. Isto aplica-se particularmente a épocas como a nossa, talvez não ainda de decadência aberta, mas certamente de declínio de um modelo, uma época que, nas suas instâncias dominantes, anulou qualquer olhar crítico sobre si própria e prossegue o caminho para o abismo em plena cegueira. Neste contexto, os «activistas estéticos» de hoje são os novos bárbaros, os que já estão há algum tempo dentro das portas da cidade. São aqueles que vieram
para agir, para pôr fim ao reino dos oradores e às suas «eloquências e retóricas», próprias de épocas vazias – ou demasiado cheias, ideologizadas, de um e de outro lado. Depois, talvez os intelectuais regressem à polis investidos de outras funções. Por enquanto, os novos bárbaros que se instalaram portas adentro na cidade podem ser os pensadores ou os activistas, os artistas ou os colunistas da imprensa, os escritores ou os programadores culturais, os historiadores ou os cientistas...
Concluo que não chegámos ao fim de uma era com o desaparecimento do intelectual de perfil clássico, que conhecemos de Voltaire a Sartre e Pasolini – ou também, entre nós e durante décadas, de Eduardo Lourenço. O que aconteceu é que o seu centro se estilhaçou. Mas continuam aí figuras a que podemos chamar os intelectuais da era digital, ou global, que se servem de vias e suportes diferentes dos tradicionais (Bernard Stiegler, por exemplo, actua insistentemente sobre as consciências através da Internet), e que agem separadamente, dispersamente, mas muitas vezes com clara convergência de propósitos e resultados. Os efeitos destas formas de intervenção dispersas são diferentes, mais imprevisíveis, mais plurais, em geral mais «leves». Por outro lado, as intervenções deste tipo no tecido social não serão tão clara e explicitamente «políticas» – sem deixarem de o ser –, mas isso deve-se ao facto de a política ela mesma ter deixado de ser o que era. Deixou de precisar de ideias, deixou mesmo de ser uma «arte» – a do possível –, para se transformar cada vez mais em espectáculo mediático em vésperas de eleições, num discurso sofista ao nível do da publicidade e num jogo ilusório de soberania, enredada nas malhas que o império da finança global tece.
É a esta forma nova de política que responde essa nova figura da «função intelectual» disseminada pela anarquia criativa de uma nova «intelectualidade sensível» e plural.