11 setembro, 2007

A GRANDE ALEGORIA: TT


Foi há seis anos. Algum tempo depois, tendo de pensar "o estado do mundo", a minha visão dos acontecimentos era, e continua a ser, a que se segue:

... Há um século estavam ainda activos os restos da metafísica, a dialéctica niilista, visões dualistas das «duas culturas», coisas que entretanto se desvaneceram do nosso horizonte cultural apaziguado, indiferente e relativista. E que nem a grande alegoria que abriu ao novo século as portas de mais uma série infinita de guerras conseguiu abalar: a do espectáculo de fogo que arrasou em 11 de Setembro de 2001 o templo da glória mercantil do mundo, o skyline do poder de uma divindade abstracta e cega que não conhece «fiéis» e está neste momento a instalar santuários maiores na China e noutras «economias emergentes» do mundo.

Essa alegoria não é abstracta, produto de uma projecção imaginativa, qual impossível fotografia do mundo, mas historicamente concreta, símbolo do novo século. Foi visível em «tempo real», mas isso não deixa de a tornar duplamente irreal. Num primeiro momento, pela estupefacção perante um evento que superava todas as ficções, claramente visto num meio virtual que já assumiu o estatuto de única realidade, a televisão. Depois, porque o acontecimento («o súbito aparecer do informe»), que alguns tendem a ver como a referência decisiva para a avaliação do estado actual do mundo, se viu continuado, para além do choque inicial e de mais uma guerra santa do petróleo por ele desencadeada, essencialmente no plano do «simbólico», e a dois níveis, comunicacional e ideológico: o da ensurdecedora repetição dos discursos sobre o evento (a forma preferencial de repercussão e actuação dos acontecimentos no mundo de hoje, da sua «legibilidade»); e o de um ritornello da História, depois das proclamações do seu fim e de um período relativamente longo de «greve dos acontecimentos» (Baudrillard), pelo menos para a América e a Europa, sem guerras portas adentro desde 1945. A queda do Muro de Berlim não abriu, de facto, nenhum novo ciclo, limitou-se a encerrar a fase da guerra fria, cujo lugar viria a ser ocupado no novo milénio pela «guerra infinita» (Foucault) em que vivemos. À greve dos acontecimentos, apenas animada pelo fim dos últimos regimes totalitários e colonialistas da Europa, a uma existência de abundância e de segurança garantida pela paz armada do segundo pós guerra, seguiu-se um período de ânsia de acontecimentos, que caracteriza o momento actual, com uma série de traços que lhe conferem o perfil de um tempo de cultura do radical e, em certo sentido, afim desse, também do sublime, se por isso entendermos um acontecimento que a si próprio se supera, por ser mais real do que a própria realidade: nos limites históricos da nossa contemporaneidade, e numa espécie de relação especular invertida, esses dois momentos de uma «sublimidade» que é o começo e o fim do terrível, foram Hiroshima e o seu pendant, o WTC, dois símbolos de ordens imperiais abaladas e de uma outra ordem, fálica e patriarcal, que desde os começos da civilização se viu representada por torres, portas, zigurates e metrópoles, materializações de uma «verticalidade culturalista» que se sobrepõe, e se impõe, à «horizontalidade naturalizada» (Fernando R. de La Flor).


O acontecimento de Nova Iorque não abre nenhuma cesura radical no rio da história contemporânea, não instaura um antes e um depois. Caindo sobre nós como um choque inaudito, um apocalipse profano muito diferente da ideia do «fim da História» antes proclamada por Francis Fukuyama (que correspondia mais a uma estagnação num modelo conhecido e pretensamente inultrapassável), veio, isso sim, repor no nosso horizonte imediato algo que já conhecíamos, abrindo de novo o discurso da separação depois da guerra fria. A isso chama-se agora (na fórmula infeliz de Samuel Huntington, só explicável por mais um regresso, o do fundamentalismo de cariz religioso deste novo tempo de cruzadas) «o choque das civilizações», que Edward Said corrige para «o choque dos preconceitos», com a intuição certeira de que civilizações e identidades não são entidades fechadas, mas processos resultantes de cruzamentos e contactos, historicamente fundados em práticas de tolerância e convivência. O estado do mundo está hoje novamente marcado pelo regresso do religioso na frente política (ainda que por vezes sob formas camufladas, que não chegam para esconder a osmose entre monoteísmo e absolutismo no universo dos impérios), contra o fundo pardacento, mas todo-poderoso, da economia globalizada. E é isso que explica os novos discursos da separação, da radicalização maniqueísta da tendência para a teologização do político e para as «alternativas compulsivas» nesse domínio. Tendência muito ocidental, escrevia o filósofo Karl Jaspers nos anos cinquenta, no rescaldo do nazismo, mas igualmente oriental, nas práticas terroristas dos soberanos da Arábia Saudita e de tantos Estados árabes do Golfo, «amigos» das democracias ocidentais, e na pregação e na actuação actuais dessa figura tão genuinamente americana que é o «profeta electrónico» Bin Laden, «alguém para quem o que importa é a riqueza e o poder, não se olhando aos meios» (como assinalava Alain Badiou numa conferência feita logo em Outubro de 2001). E a riqueza e o poder, por enquanto, vêm do petróleo. Estamos a assistir, nesta alegoria histórica que poderia ser uma reposição da Tetralogia de Wagner, a uma nova maldição do ouro, agora não do Reno, mas do Golfo, uma das grandes maldições modernas. A teologização do político, hoje visível na «instrumentação política da religião» pelas monarquias do Golfo, por sua vez instrumentada pelos próprios Estados Unidos (é ainda Badiou quem o lembra), não é nova, e recebeu, entre os anos vinte e trinta do século passado, um dos seus suportes teóricos mais importantes na filosofia política de Carl Schmitt, com as suas teses da necessidade, política e antropológica, de criação de imagens do inimigo e do «inimigo providencial» (que reencontramos hoje, tanto na política americana desde a Guerra do Golfo, como nos excessos fundamentalistas de um Islão desfigurado) e a sua teoria salvífica (instrumento ideal de todos os totalitarismos) que exige a anulação das consciências individuais em nome de interesses colectivos, contra um inimigo absoluto e absolutamente «necessário». A partir daqui, todas as guerras podem ser legitimadas como necessidade inata, quando elas, na verdade, são artefactos culturais. É também este o fundamento de todas as polarizações maniqueístas de fundo nebulosamente religioso, com a instituição de «eixos do mal» e o hipostasiar de um «nós» (em relação ao qual se fica logo preso no dualismo do pró e do contra) que se desdobra hoje, ao sabor das conveniências, em «o Ocidente», «as nossas sociedades» ou «as democracias». A cultura contemporânea pode estar a resvalar para este declive perigoso, a vários níveis: na paranóia anti-terrorista gerada pelo 11 de Setembro, na proliferação das seitas, na apatia política generalizada, também em certas formas de literatura hoje dominante, mítica, mitificadora e alienante, e até no reverso positivo da perversão do político, na presença indesmentível de formas diversas de voluntariado, de filantropia e de «espírito de missão». E, naturalmente, nas figuras de políticos conservadores e com propensão absolutista, enredados nas ligações perigosas, à la Carl Schmitt, entre poder e salvação.
Para fazer frente a esta nova constelação salvífica será preciso reanimar a cultura do conflito produtivo, aquela que é criadora e não destruidora, a que radica na comunicação e não na violência, e que já Hesíodo, num poema do século VII a.C., contrapunha aos «maus conflitos», os que precisam de inimigos e não de rivais. A história colonial europeia e todas as formas contemporâneas de neocolonialismo, bélico e mercantil, fazem parte de uma cultura da não-comunicação e do extermínio cujas raízes o historiador sueco Sven Lindquist tem vindo a investigar numa série de livros em que procura mostrar como a primeira exportação da Europa foi a violência, e como o extermínio foi a consequência de uma noção de cultura baseada na relação hostil e xenófoba entre povos e culturas. É uma história de «progresso» com um preço altíssimo. Para uns, uma linha recta interminável e triunfante, para outros um círculo vicioso ou viciado em que a humanidade «marca passo» (estranhamente, é já este o ponto de vista de um revolucionário da Comuna de Paris, Louis-Auguste Blanqui, em L'éternité par les astres). Provavelmente, nem uma coisa nem outra correspondem à realidade, mais complexa e vertiginosa, do ser do mundo no tempo. Para um filósofo do progresso humano como Hegel existe uma vontade da História, de sentido teleológico; mas «os heróis da História», diz hoje Peter Sloterdijk no livro Weltfremdheit (Alheamento do Mundo), «não são os homens, mas os ritmos e as forças do nascer e do pôr-do-mundo, onde os homens encontram o seu lugar». E se, como diz uma personagem d' O Homem sem Qualidades, de Musil (o aristocrata, conservador e católico conde de Leinsdorf), «na história da humanidade não há retrocessos voluntários», não é menos certo que nela tem havido sempre estrondosas quedas nos abismos da barbárie.


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