18 abril, 2008


O HOMEM SEM QUALIDADES



Sairam os dois primeiros volumes do grande romance de Robert Musil O Homem sem Qualidades (D. Quixote, 843 + 451 pp.). Deixo aqui os primeiros parágrafos do prefácio que escrevi para esta nova edição, que prosseguirá ainda com mais um volume que inclui o espólio deixado inédito por Musil.


No próximo dia 28, às 18,30, os actores Diogo Dória e Sara Ribeiro lerão uma montagem de excertos do romance no Goethe-Institut / Instituto Alemão.

Um não-romance genial...

Esta é sem dúvida uma obra singular. E única no panorama da ficção do século XX. Mais do que um romance, O Homem sem Qualidades é o maior projecto romanesco, deliberada e quase necessariamente inconcluso e inconclusivo, da literatura do século passado. Um rio sem limites nem margens, que não desagua em nenhum mar conhecido, objecto inclassificável, para lá do «literário» e da ficção – o que poderá explicar, mas não legitimar, o total silenciamento deste exemplo maior da literatura por vir em O Cânone Ocidental, de Harold Bloom, cujo objectivo parece ter sido o de cristalizar, sob a égide sacrossanta de Shakespeare, os seus clássicos, já canonizados, do eurocentrismo literário. No momento da morte inesperada de Musil em 15 de Abril de 1942, no exílio de Genebra, O Homem sem Qualidades é verdadeiramente o «livro por vir», aquele cuja essência – no seu protagonista acentrado, no processo da sua génese, no cerne do seu pensamento – é a de uma dialéctica do retardamento e de um laboratório de possibilidades que o transformarão na obra aberta por excelência e na «tarefa criadora [mais] desmedida» (M. Blanchot, em O Livro por Vir) da história da literatura moderna. O Homem sem Qualidades será, durante mais de duas décadas, a obra em processo de criação e transformação que se autonomiza e se impõe de forma obsessiva e implacável ao próprio criador, aprendiz de feiticeiro que a controla cada vez menos à medida que ela se vai transformando numa rede rizomática de possibilidades de crescimento e de perspectivas de finalização sempre adiada, que parece querer reflectir o próprio feixe aleatório de possibilidades que é aquilo a que chamamos «realidade». Se a ironia é neste livro, como diz Blanchot, «um dom poético e um princípio de método» que modula, não apenas a palavra mas também a própria composição romanesca, na oposição contrapontística permanente e irresolvida entre «a exactidão e a alma», a reflexão e os sentimentos, o indivíduo e o seu mundo, essa mesma ironia haveria de determinar todo o acidentado e contraditório processo de génese e de publicação deste objecto literário esquivo que, contrariamente ao que frequentemente se tem dito, será mais um não-romance do que um anti-romance. (...)

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