16 junho, 2007

«UMA INQUIETA CERTEZA...» (6)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA


(Um tema impossível, com fotografia em fundo)



Paisagens da alma, imagens do corpo

Paisagens da alma: por exemplo em David Mourão-Ferreira, numa poesia da obsessão e da paixão, significa a sobredeterminação (ainda romântica) do sujeito sobre a natureza. Poderia também dizer-se: paisagens na alma, pensando agora no espelhamento das coisas do mundo, criando Stimmungen (estados de espírito: é isso que lhes confere «alma» e duração: «Cada coisa tem o seu fulgor,/a sua música./Na laranja madura canta o sol,/na neve o melro azul.../Só isso faz/com que durem ainda./Assim o coração»; e «a alma /aspira a ter do mundo o melhor dele», Eugénio de Andrade, O Sal da Língua). Neste caso — aquele que me parece, apesar de tudo, ter ainda mais a ver com uma poesia «da natureza» —, a Natureza (no sentido do ente, do ser ôntico, de cada coisa na sua manifestação fenomenal) está aí para ser vista (Eugénio: «Fazer do olhar o gume certo», Matéria Solar); ou também para ser lida (como em Fiama, no orfismo da sua última fase, que recupera o velho topos do livro como mundo, tratado por Hans Blumenberg em A Legibilidade do Mundo). Em qualquer dos casos, o processo é sempre o de uma metaforização (S. Kemal: as apropriações /interiorizações da natureza dão-se através da metáfora; nela, «natural forms articulate inner events»).


David

David Mourão-Ferreira, de cuja poesia se fala a seguir, diz também: «modelar em alma/o que era apenas corpo (...)»; e «o que era apenas alma volve-se agora corpo». Daqui parto, e a este poema — «Corpoema» — iremos dar. A poesia de David, aparentemente clássica e afirmativa, diz o precário — mas agora as coisas do mundo, os objectos luminosos, ou não tanto, convergem num único: a natureza é o corpo, e a sua experiência quase exclusiva é a de Eros, ou melhor, de um arco que vai de Eros a Tanatos, numa permanente oscilação entre «as ancas de Afrodite» e «os olhos das Parcas».


Ou: entre o Corpo e a Morte que o espera, mas que é — ouve-se aqui Espinosa! — a sua Eternidade, como no

Epigrama para uma terceira despedida

Eu vi a eternidade nos teus dedos!
Eu vi a eternidade, e amedrontou-me
saber, tão de repente, tais segredos.
— Eu não mereci, sequer, saber-te o nome.


Natureza é aqui também, ainda mais, um produto da cultura: os corpos da poesia de David são todos atravessados por pulsões culturais de vária ordem (que estão presentes até nas formas perfeitas e classicizantes; ou mais claramente em figuras como a daquela rapariga que se chamava Europa...), e por isso toda a natureza que eles possam representar mais não representa do que o estável desequilíbrio do Ser, expresso no conhecido Haikai de Os Quatro Cantos do Tempo: «Nós temos cinco sentidos:/São dois pares e meio de asas.// - Como quereis o equilíbrio?».


Este desequilíbrio — que é reflexo da própria instabilidade da natureza enquanto caos de paixões e forças incontroláveis — é dado através de um processo, metafórico por excelência também ele, ou dialéctico, que vive de uma tensão dual, de uma dialéctica de opostos que tem como horizonte ideal um terceiro plano, muitas vezes ausente do poema. Parece atravessar a poesia de David uma obsessão pelas terceiras realidades, ou, para usar uma figura mais exacta e cara a Derrida, uma «ausência significante» que se agiganta entre duas presenças que se retraem no encontro amoroso.


Na sequência «Contrapontos», por exemplo, onde encontramos um conjunto todo construído na base de uma dialéctica Amor-Morte, elementos naturais—oscilações da alma, e de uma alternância construtiva rigorosíssima, por vezes quiasmática, na relação inter-dísticos, ou entre os versos de um dístico (afirmatividade/negatividade, Natureza/«Alma»...), tendendo para a distância indefinida de um «silêncio sonâmbulo», outonal, a «margem taciturna», e mesmo a «náusea»...

Contrapontos

I. Nuvem

Vai desplumando a nuvem - ou as asas? -

a ave que no céu sonhou bebê-la.

Entanto, coração, entre as palavras,
procuras destilar uma certeza.

II. Os amantes nas dunas

Que confidências múrmuras cresciam,
em torno ao verde arbusto desse encontro!

Mas, na praia, gaivotas desenhavam,
com mil pegadas, a palavra Outono.

III. A margem taciturna

Longos rios, as tuas longas pernas;
e remorsos na margem taciturna.

Do teu corpo que tem a cor do mel.
a náusea há-de ficar - não a doçura!

IV. O silêncio

Dos corpos esgotados que silêncio
tão apaziguador se levantava!

(Tinha uma rosa triste nos cabelos,
uma sombra na túnica de luz...)

Para o fundo das almas caminhava,
devagar, o sonâmbulo silêncio.

(Que apertados anéis nos braços nus!)

Mas o silêncio vinha desprendê-los.


A trans-formação, o devir permanente das coisas e dos corpos, em que a morte se vem inserir de modo natural e insistente, será porventura uma das categorias-chave para entender a poesia de David. São múltiplos nesta obra os sinais — na escrita, no amor, no sexo, nos ciclos do tempo e da morte — dessa transformação de tudo em tudo, do corpo em nada, de texto em texto. Transformação que se evidencia também nos mais diversos níveis da tecitura interna do poema, em especial nas imagens e metáforas obsessivas do amor, do sexo e da melancolia.


E, talvez acima de tudo, naquele uso altamente original (e intrinsecamente ligado à presença da temática e dos motivos da relação Amor-Mors) dos mecanismos da rima. Rima imperfeita, muitas vezes, como imperfeitos são os meandros da relação amorosa, nas suas modulações de ambiguidade, do aproximativo, do inacabado e impreciso/imprevisível («Mas entre as espirais confusas quem sabia / se era de novo amor, se era só melodia?»). Também o verso hesita constantemente entre o enlace da rima e a suspensão indecisa da meia-rima, de uma promessa não totalmente realizada. Na rima e no seu uso criativo por David está presente algo de essencial na sua poética (na sua erotica?) como modo de aproximação ao outro, para com ele «coincidir». A rima é aqui, como dizia o Rilke dos últimos anos numa carta à pintora russa Merline Klossowska, «la grande déesse, la divinité des coincidences».


Não sendo à primeira vista uma poesia da natureza, a poesia de David Mourão-Ferreira é um das mais evidentes testemunhos poéticos da ambiguidade do corpo (entre natureza e cultura, physis e alma) e de uma sua metafísica, da sua plenitude e da sua transitoriedade. É uma dialéctica, muito particular, da ausência e da presença, da relação a três — corpo, alma e a morte suspensa, com a qual se convive «naturalmente». Exemplo acabado disso, desse equilíbrio instável da alternância e da sequência de alma/eternidade e corpo/morte, é

Corpoema

Das sílabas a espátula
começa pouco a pouco

a modelar-te em alma
o que era apenas corpo

De sílabas a estátua
De lâminas o sopro

O que era apenas alma
volve-se agora corpo


(continua)


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