14 junho, 2007

«UMA INQUIETA CERTEZA...» (5)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA

(Um tema impossível, com Miranda Justo e Pedro Calapez em fundo)



Egito Gonçalves: a circunstância da paisagem


Egito não é um poeta da natureza no sentido mais estrito do termo: foi sempre mais um poeta de circunstâncias e de lugares. Um dos seus livros mais emblemáticos desta circunstancialidade, a que me reporto aqui, é E no Entanto Move-se (1995), de onde retiro esta

Homenagem a Antonio Machado

Nesta manhã, as águas são ainda jovens
ao banharem Sória. Prata límpida, o Douro
aos versos de Machado me transporta
para buscar aqui o seu espírito, a visão
bucólica, os élitros do estio, o monótono
rodar dos alcatruzes que arrancam
da digerida lição de vida. A pobre terra
é um esplendor solar de verdes choupos,
de caminhos brancos onde o coração vibra
e se expande. Detenho-me na margem,
penso como o rio envelhece no seu curso,
na foz desaguará barrento e dramático
quando o inverno chegar. O seu destino
não é o mar de Collioure, mas o poeta
engrossou igualmente as suas águas, rasgou
o seu caminho, atravessou as sombras
e aqui me conduziu para encontrar referências
na luz forte de Sória, na música que abre
um espaço onde antigos versos vivem.
Um ninho de cegonha está deserto. Quando
o crepúsculo diluir as perspectivas
não estarei aqui. Mas desta luz, um dia,
falarei como um verso indelével que a brisa
modelou, uma janela aberta onde,
como um espelho, o poeta assoma
e o cantar do coração devolve ao viajante.

(21.1.91)


É um exemplo, entre outros, de uma poesia de viagem (wandering poetry, como lhe chamou Rosa Alice Branco) em que a circunstância é sempre um lugar do mundo (por vezes da natureza nesse mundo), com um corpo (quase sempre de mulher) em primeiro plano. Isto transforma o poema em espaço de um cruzamento: de um lugar que se impõe e funciona como o punctum da fotografia (como o descreve Roland Barthes), e ao mesmo tempo recebe uma sobrecarga afectiva que lhe é dada por quem (o) escreve: dá-se um «pacto entre o corpo e o mundo» (Rosa Alice Branco). O mundo nunca é descrito — embora se fale de «realismo» a propósito de Egito Gonçalves —, trata-se de uma troca, de um diálogo com lugares, condição necessária para que eles existam.


Por outro lado, estas paisagens — e trata-se sempre de paisagens, i.é de natureza culturalizada — são muitas vezes dadas através da sua imagem já literária (os campos de Sória através de Machado): Egito escreve e permite escrever (exemplarmente com este livro) uma história cultural da paisagem europeia, que se encontra com frequência na literatura de viagens (já desde os viajantes da Península nos séculos XVIII-XIX) e também na pintura de convenção, de «género», etc. Para reaparecer, surpreendentemente, também numa pintura de paisagens dos nossos dias como foi o projecto de José Miranda Justo durante alguns anos, com as exposições «Reflections on Landscape» (1994), «Paisagens com Nome» (1995) e «Paisagens por pintar» (1997). O título desta última é inspirado em Rilke, que sabe que «perdemos a Natureza», porque há um desconhecimento mútuo que cresce à medida que nós crescemos — e a arte é a via para tentar encontrar uma ligação com ela. Mas Rilke confunde Natureza e Paisagem, quando escreve (no livrinho sobre a colónia artística de Vorpswede) que a paisagem nos é estranha e que nos sentimos terrivelmente sós debaixo de uma árvore, ou que a natureza não sabe nada de nós... E depois escreve ainda, e é a isso que reage a exposição de Miranda Justo: «Há tanta coisa que não foi pintada, talvez tudo! E a paisagem está aí, intacta como no primeiro dia»! O problema é que... a paisagem nunca está aí «intacta», e muito menos «como no primeiro dia»!


Em Miranda Justo, pintor de paisagens totalmente culturalizadas (como se pode ver já pelos títulos que dá às obras) acontece um pouco o mesmo que em Egito: são paisagens de paisagens, feitas a partir da citação de outras, pictóricas ou literárias, e «a paisagem deixa de ser em absoluto o cenário de uma representação, para se tornar no território ficcionado de uma acção» (Manuela de Freitas a propósito de Miranda Justo, que, por sua vez, comenta: a paisagem não é um assunto ou tema, é um «funcionamento») — em Egito Gonçalves, cenário de um encontro.


Em «Homenagem a A. Machado» os lugares não existem, antes de um eu/tu que os vê/lê e os transforma em pré-textos que já se nos revelam à luz de outros textos. E a natureza é já uma natureza literarizada, que vem de um livro (Machado), se nos dá a ver num lugar — nunca inocentemente — e regressa a outro livro (Egito). O poeta Egito Gonçalves toma, no final do texto, o lugar do poeta Antonio Machado, pela «memória afectiva do lugar». E o seu texto cria uma ilusão de «realismo» através da força dos deícticos, recurso com o qual o poeta pretende mostrar que a vivência dos lugares não é meramente imaginativa, fantasiosa (mas não será?).


Assim, é a obra (a poesia) que «nos abre verdadeiramente os olhos» para um lugar (lembra Adorno), ao passo que a natureza (é) cega. Para um camponês, uma paisagem é sempre igual (será que ele a paisagem?) — melhor, nem é «paisagem», é apenas natureza bruta, ciclo repetido. Mas a planície da Toscana, ou a serra de Sintra, nunca mais se libertarão de um certo olhar cultural e literariamente marcado do poeta que as vê, e vendo-as, as re-interpreta. E olhar é então pôr em acção uma interioridade que «inaugura uma forma» (Rosa Alice Branco).
Para entender isto nem precisamos de recorrer a paisagens com séculos de peso literário: basta ler um segundo poema de Egito, que fala do «dia» de Verão.

O dia apareceu ornado com cavalos de sombra.
As pessoas queixam-se. O Verão escasso desanima-as:
as coisas estão feias. O sol
poderia ajudar a esquecer. Também eu
me sinto um pouco desamparado — escrevo o poema
para ver nele um vestido claro, um lírio
na duna, uma qualquer imagem que permita
receber a chuva como se estivesse a nascer a luz.


Aqui fica ainda mais claro como o poema é o lugar que faz (onde se faz) o mundo, e que esta é a sua finalidade. Habitando os lugares — da proximidade ou da distância — de uma forma inquieta (é esta «a qualidade levemente amarga desta poesia»), Egito Gonçalves não escreve propriamente sobre lugares e pessoas neles, mas trá-los à escrita, reactiva-os — para si próprio e para o leitor.

(continua)

Calapez, Abstract landscape (2003)

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