29 julho, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA...(10)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA, A PINTURA E A FOTOGRAFIA

(Um tema impossível, com Morandi e Cruz Filipe,
Daniel Blaufuks e Jorge Molder em fundo)



B) Naturezas mortas

Ecfrase: Pedro Tamen e Vasco Graça Moura

Onde está a Natureza aqui? Na pretensão ou na nostalgia de a arte ser natureza: em Tamen, o que já é natureza morta no quadro de Morandi potencia-se numa outra, que pretende no poema mostrar como a primeira (aliás, segunda!) é «verdade»! É (diria o velho Pessoa) um «terraço de um terraço de um terraço que dá sobre uma coisa que, ela sim, será linda»? Será! Mas será ela «verdadeira»? A «natureza» aqui — jarras, pichéis, almotolias — é em si já morta: a arte é que a torna viva (cf. verso 7).

Giorgio Morandi

Morandi, Giorgio

Jarras, pichéis, almotolias,
fugazes flores na fuga da atenção;
quase nada em verdade,
salvo a luz de um tempo bem atrás
do tempo do pincel
no tempo deste olhar.
A natureza morta e mais que viva,
varanda resistente ali plantada
sobre o vazio aceso, intenso,
e tanto que o não é:
quase nada e verdade.

(Depois de Ver, Quetzal 1995)


Giorgio Morandi

Em Graça Moura dá-se o cruzamento da arte (e reminiscências subtis de outras obras: o dedo sobre o bico do peito é citação!) com uma nostalgia da natureza que não pode ter lugar neste mundo (em Cruz Filipe estamos num universo da ilusão barroca) — a não ser na pele da mulher? Mas até ela é só da pintura/da cultura/da atmosfera decadente do quadro. Todo o quadro, e os poemas sobre ele, respiram melancolia: melancolia de um universo outro, o de uma Sintra que mal se avista, o de uma natureza mítica de corpos de ninfas e faunos onde esta figura se revê...
O Bildgedicht, o poema que se sobrepõe ao quadro, é o exemplo máximo, e mais refinado, de rarefacção da natureza na poesia de hoje, ou do seu encontro assumido com a arte.

Cruz Filipe, L'ordre des visibilités

crónica feminina

1. entre as dobras da seda

entre as dobras da seda a leva cinza
da fieira de pérolas correndo.
as sombras azuladas vão descendo,
sobre a gaveta aberta, a luz desliza

e a mulher ao espelho, a indecisa,
pousou o pente e pensa por momentos
e no bico do peito os sentimentos
com as pontas dos dedos sintoniza.

de sintra mal se avista o promontório
prateado da lua, o lugar onde
entre faunos e ninfas se revê.

e o gesto longo pára merencório,
enquanto ao fim do mar o sol se esconde
e ela sorri mas sem saber porquê.


Cruz Filipe, Les portes s'ouvrent sur les miroirs


3. estava nua, só um colar lhe dava

estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêncio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava.

estava nua e branca num estreito
lençol que o fim do sono desdobrava
e a noite era mais livre e a lua escrava
e o mais breve pretérito imperfeito.

só o tempo verbal lhe fugiria,
no alongar dos gestos e requebros,
junto do espelho quando as aves se vão.

toda a nudez, toda a melancolia,
a dor do mundo, a deslembrança, a febre, os
olhos rasos de água e solidão.

(Sonetos Familiares, Quetzal 1995)



A segunda natureza das cidades:

Joaquim Manuel Magalhães

Uma poesia que, por detrás de uma parede aparentemente prosaica, sem qualquer réstia de emoção ou de «lirismo» (como poderia ser de outro modo, sendo o mundo como é?), é, desde os anos oitenta (Os Dias Pequenos Charcos, 1981), um barómetro que revela uma consciência aguda do processo de desfeamento do mundo à nossa volta — das cidades, dos subúrbios, mesmo dos refúgios «naturais» em que hoje domina a natureza de betão (é esta a dominante nesta poesia). Tudo isto — e o mal-estar derivado deste nosso modo compulsivo de estar (e já de ser) — foi sendo poeticamente descrito em registos que vão do frio e sarcástico (falou-se de «novo realismo») ao melancólico.
Desde Os Dias Pequenos Charcos, J. M. Magalhães cultiva um regresso perverso a uma imagética e aos motivos da Natureza e da sua poesia mais ou menos feliz (vd. os «Idílios»), transmutando-os em visões quase apocalípticas dominadas pelo «baldio dos afectos», o betão, o logro e a morte, «a poeira levada pelo vento». Negativiza todo um instrumentário da tradição e dos seus clichés, vira do avesso todos os «idílios« (vd. «Sloten»), com uma ironia cortante ou melancòlica, e a certreza de não poder fugir à segunda natureza que se apossou de toda a vida (sub)urbana nos charcos dos dias. Desfaz amargamente todas as ilusões de qualquer sentido apaziguador ou reconciliador de Natureza: no plano dos corpos/afectos e no das coisas naturais, campos, céus (vd. «Idílios»; «O cimento...»).

© Jorge Molder

Idílios

Dois

Lavou as mãos na água cinzenta.
Povoado de presságios o olhar
não abre já para nenhuma chama.
Davam-lhe a beber esses venenos.

Era flor e morte e sobre o mar
o esfaimado tigre da tristeza.
O fictício aparelho da razão
guiava um rebanho enfeitiçado.

Uma espécie de vento imperfeito
voltou a soprar. Os dedos
reabrem essas caixas misteriosas
donde antes tiravam as agulhas,
os rebuçados, os botões, a fita grená.

Quatro

Vamos dar-nos ao culto das estrelas
sanções e mais sanções e o absoluto
bem preso dentro da camisa.
O sedutor. Diziam que eras tu, os enganados.

Balas de sombra atiradas sobre corpos
separados doutros corpos vai o meu
correndo de ti por furnas de betão.
Versos e versos para dizer isto, o amor.

Os meus braços iam com os teus.
Desse nó grassou a peste que nos campos
chamam os granizos as geadas.
Posso chamar-lhes o espírito
coberto de tintas, o rubor do ferro,
o anil dos figos, o ocre da testa dos bezerros,
o cobalto minado do amanhecer.

A perversão dos versos conduz-me.
Sedutor exposto ao frio
da casa erguida por seus erros
dou-te uma luz de azeite para te perderes.

Os detritos da vida invadem esta vida.

Cinco

O lance do olhar entre fetos e troncos
corta como as frechas da ternura.
Canas, miosótis, multicores
os pássaros rompem dos refugos.

Vi-os nas fotografias, por serras de cartão,
os cactos e as folhas podres
juncando-lhes os pés.

Faias de cetim no cerro dos telhados,
a mesa com a folha de cerdeira,
as cortinas vermelhas apanhadas
pelo garço gorgorão onde balança
o basalto de teus olhos.

A sombra azul chamada o céu.

(Os Dias Pequenos Charcos, Presença 1981)

© Jorge Molder

O cimento antes de secar


Estou a tentar abrir uma porta.
Não sei para que lado a chave vai quebrar
nem sei como chegou à minha tentativa
o interdito com que de novo procuro.
Alguma coisa está a ser calcada
no interstício dos gonzos, na dobradiça
cercada de estrelas mortas a fulgir.

Atravessou entre pinheiros.
O vento levantava areia,
enterrava-se no côncavo da represa.
Faltava a esse amor a ilusão
do amor. O céu mordente.
Esse rastilho quase animal.
Toda a explosão do mundo.

De golpe incendiaram-se as plantas,
as que de mês a mês vemos crescer
até às flores as que dão flor,
a novos ramos as que só dão folhas.
Mês a mês, ramo a ramo, flor a flor,
a mentira bate na lagoa e dança
no tecto com as venezianas corridas.

Ficámos a falar por muito tempo.
Tinha o corpo de betão.
Mostrei-lhe livros, discos, labaredas
que falham quando procuramos
as palavras que já os olhos disseram.
E há umsilêncio entre gestos cegos.

O mármore pulsa com os pontos cardeais.
Parece o coração. Bátegas
de encontro ao fechamento, obscuras.
Escuta, continua a escutar, a treva
solta-se da terra inacessível
onde os diamantes prefiguram
a nossa petrificação.

Vivíamos no canal de lava da rua,
no último café a fechar,
as solas sobre um vidro em ebulição
e perdíamos.

É muito de manhã. Acorda
a dor humana que me faz companhia.
Estou a sair de tua casa
a caminho de lugar nenhum,
a minha casa, esse vazio
com a música arrumada,
o cinzeiro, o aspirador, a cortina míope,
a gelatina da cama
onde não mais queria voltar.

© Jorge Molder

Sloten

Às vezes acordamos felizes. A casa
está sossegada, o quarto
dá para um ancoradouro com cantarias caídas
e árvores rentes e muretes de socalco.
O burel da cortina antepara o céu
opaco sobre prédios urbanos.
O universo, submisso, parece disposto
para proteger; acolhe na manhã
as fachadas com os andares de três janelas,
de duas, de uma apenas; terminam
em triângulos difusos na neblina.
O aquecimento irradia dos tubos, a chuva
acaricia os barcos parados, um homem com vara
debruça-se para retirar detritos.
Bandos de pássaros, brandos ventos, tudo pousado.
Abro a blindagem do quarto e ouço
os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão
a sangrar.

*

Barcos, velas colhidas na esquina de rua.
E o seu corpo vibrante de placidez
no abandono ordenado da periferia;
os regulares, milimétricos, prensados
blocos de arrabalde da trucidação industrial.
[...]

(A Poeira Levada pelo Vento, Presença 1993)


© Daniel Blaufuks

António Franco Alexandre

O «núcleo urbano» da poesia de A. F. Alexandre é um aspecto do seu universo poético deliberadamente artificial: a natureza não tem lugar aqui, a não ser como em J. M. Magalhães. Mas há um fundo matérico desta poesia que tem a ver com natureza: escreve-se a partir de uma lúcida fenomenologia do impreciso que sustenta um jogo com a qualidade quase matérica da experiência e vive de incisões sobre o pormenor, a única coisa que é poeticamente habitável. Mas toda esta poesia (do Als-Ob, de um «como se» como estratégia poetológica) assenta num grande paradoxo e dele vive: escrevendo ao fio do corpo, não escreve com nenhuma pretensão de autenticidade, mas «como quem mente». A natureza morre, porque aqui se dá ao mundo uma ordem de despejo e se faz o luto da mimese.

A questão urbana

1.
estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
movimentam no espaço, e aos bandos
os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.

2.
movem nos muros, a vagina mineral das mães
adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
algum visível afastamento das madeiras, algum
pensamento violentado, porisso as coisas permanecem sentadas
e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.

3.
arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
entendem, decifram sobre o grés as patadas da terra,
espalham na violência um musgo que prenuncia a
transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
se perde pé muito de repente e se afundam as asas
como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.

4.
separam, mas esse
é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia desejámos.
[...]

[Os Objectos Principais, 1979]

**

Emersoniana

a oeste são os planaltos, a vida selvagem
que um céu de água recolhe,
um horizonte de coisas por dizer, por acontecer
mas a verdade mais abstracta é a mais prática:
let him look at the stars. tão longe
do seu próprio quarto como da multidão.

porisso os selvagens, que não têm mais
que o necessário,
conversam em figuras.
esta dependência imediata da linguagem
esta radical correspondência das coisas visíveis
nunca perde o poder de afectar-nos.

devemos ir sós, vivos e sós. i must
be myself.
tudo quanto Adão teve, o céu a terra a sua casa,
tudo podes e tens.
keep thy state; come not into their confusion.
constrói, sim, o teu reino, o teu mundo: natureza.

[As Moradas, 1987]

(Poemas, Assírio & Alvim 1996)

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