19 julho, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA... (8)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA


(Um tema impossível, com fractais em fundo)



Carlos de Oliveira: o poema-fractal

Carlos de Oliveira representa um caso muito particular de um autor que vem de um neo-realismo em que terra e natureza eram instrumentos de um trabalho ideológico, mais que poético (até Cantata, 1960). Por exemplo ainda num poema como «Imagem», onde são legíveis os últimos estertores do neo-realismo nas metáforas heróicas, ou pelo menos de sentido colectivo:


Imagem

Cardos
em teu louvor
pisados por quantos já vieram
de pés nus
lacerados
cantar-te antes de mim
cardos
à tua imagem
pátria
de tojo.


Nessa fase, a imagética da natureza invade o campo ideológico, e serve-o, como depois irá servir o de uma Poética. É uma «deslocação», já pós-modernista, que ficcionaliza a teoria e a transporta para dentro do próprio campo da escrita poética. Nesta linha se insere também a importância da personagem do «inventor de jogos» (contraposta à do cientista), típica da atitude de radical perspectivismo em Carlos de Oliveira. É isto que acontece em «Estrela», «Cinema» ou «Papel», poemas de Sobre o Lado Esquerdo (1968):

Papel

Pego na folha de papel, onde o bolor do poema se infiltrou, levanto-a contra a luz, distingo a marca de água (uma ténue figura emblemática) e deixo-a cair. Quase sem peso, embate na parede, hesita, paira como as folhas das árvores no outono (o mesmo voo morto, vegetal) e poisa sobre a mesa para ser o vagaroso estrume doutro poema.


Aqui, o trabalho poético encaminha-se para uma metapoesia que se serve da Natureza e a metaforiza, sugerindo analogias para a criação — lenta, em slow motion como no «grande e infinitesimal cinema do mundo» (Osvaldo Silvestre): veja-se o paralelismo entre as folhas e a analogia natureza-poema através das metáforas do bolor e do estrume, metáforas, ainda organicistas, de vida, germinação, fertilidade, analogias que evocam a imagem dos fractais (naturais e construídos) e confirmam a vertente altamente «construtivista» desta poesia.


Tudo isto irá «esfriar» nos últimos livros, em Micropaisagem e Pastoral (e isto é sinal inequívoco de uma modernidade nova). Primeiro, na rigorosa analogia traçada entre a formação da «Estalactite» e do poema:

[...]
III
Se o poema

analisasse

a própria noscilação

interior,

cristalizasse

um outro movimento

mais subtil,

o da estrutura

em que se geram

milénios depois
estas imaginárias
flores calcárias,
acharia
o seu micro-rigor.

[...]


No ciclo com este título, o mais acabado exemplo deste trabalho analógico, a natureza fornece o material para a construção de uma poética: é uma lentíssima e minuciosa indagação dos processos da natureza como símile do processo poético, com o rigor frio de um olhar sem sujeito em que o próprio poema se analisa no seu micro-rigor, para «determinar com exactidão o foco do silêncio», numa «caligrafia de pétalas e letras», caindo de um duro «céu calcário de verso em verso» para chegar à «tensa construção de algo mais denso»: o texto é então verdadeiramente como um fractal (se quiser ver uma sequência de fractais em slide show, clique aqui), um cristal de palavras que alcançam um «grau de pureza extrema, insuportável, quando o poema atinge tal concentração» — e o mundo se retira.


Em «Chave» (1976), iremos já encontrar a dureza (vd. as imagens de uma natureza pétrea, vítrea, férrea, de esmalte, glaciar), o frio de uma poética sem réstia de afectividade nem sentimentalismo, o poema à imagem do glaciar.

Chave

Se uma película de vidro
adere à pele da pedra; se algum
vento vier,

Afere-lhe o esplendor [...]

Rodar a chave do poema
e fecharmo-nos no seu fulgor
por sobre o vale glaciar. Reler
o frio recordado.


Esfria, de facto, a olhos vistos em Pastoral (como no Celan dos últimos livros e da poesia do espólio — cf. as traduções portuguesas Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética e A Morte é uma Flor. Poemas do Espólio, editadas por Livros Cotovia —, ou também nos últimos poemas de Johannes Bobrowski, em Como Um Respirar. Antologia Poética, igualmente da Cotovia), não só pela imagética dominante, mas também porque o poema se torna coisa cada vez mais distante e menos de um sujeito, como se lê no final de «Chave» («Reler o frio recordado») e em «Musgo», onde a ideia do poema é remetida para «alguma ideia disto», ou seja do poema já só recordado, coisa de um tempo onde se acumulam imagens de ruína, decomposição e silêncio, já só acessível através do «musgo», (formação que exige muito tempo!), com o seu «discurso esquivo de água e indiferença» (Pastoral, 1976). Neste Carlos de Oliveira, como no de Finisterra (1978), a Natureza vem substituir a História da fase inicial; mas é uma natureza que só existe no texto, «o mundo só é atingível (se o for), pela mediação de uma textualidade que se tornará ela mesma representativa da (des)ordem da Natureza» (Osvaldo Silvestre).


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