08 agosto, 2013

OS GESTOS DA MÃO INTELIGENTE
DE ANA HATHERLY

Em 2011 vi, no Museo Villa dei Cedri, em Bellinzona, perto de Lugano, uma exposição intitulada Parole e figure – Con un omaggio a Michel Butor. Nessa exposição, organizada por Matteo Bianchi, ex-curador desse museu e hoje editor da Pagine d'arte, na Suíça, havia uma sala com obras de Ana Hatherly. Dois anos mais tarde, o encontro Butor-Hatherly repete-se, agora sob a forma de mais um livro da colecção «Ciel vague», daquela editora, que também já conta no seu precioso catálogo com outra autora portuguesa, Maria Gabriela Llansol, que inaugurou a colecção.


L'invention de l'écriture – assim se intitula, fazendo jus ao espírito de toda a obra da autora, o volume de desenhos e poemas, de desenhos-poema e poemas-desenho de Ana Hatherly – abre agora precisamente com uma homenagem de Michel Butor às «linhas de escrita» da poeta e artista portuguesa. O livro foi apresentado em Junho na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, no âmbito de uma grande exposição de desenhos da colecção da Fundação Luso-Americana, e passou despercebido, como tanta coisa especial e digna de atenção que acontece, mas não tem visibilidade nem repercussão, na triste e problemática «vida cultural» portuguesa de hoje (L'invention de l'écriture pode ser encontrado em Lisboa na Livraria Férin).



Esta «Invenção da escrita» reproduz os «textos visuais» que acompanhavam o ensaio «A reinvenção da leitura», publicado em 1975 pela Editorial Futura. A crítica portuguesa dos anos setenta parecia não estar ainda preparada para compreender caminhos como os que seguia Ana Hatherly. Encontro dentro do meu exemplar desse livro a crítica de Nelson de Matos a Anagramático, um outro livro de Ana Hatherly, de 1970, publicada no Diário de Lisboa de 11 de Novembro desse ano. Um desvario de incompreensões, um despautério de opiniões, um desaforo de acusações. Não admira que a referida crítica viesse a dar, como deu, numa acesa polémica com a autora. Cito o crítico: «Trata-se na verdade de um (...) exibicionismo, de um atirar poeira aos olhos dos desprevenidos, factores que são, aliás, bem legíveis no processo de elaboração dos seus livros e em toda a actividade teórica desenvolvida.» Ou: «Um conjunto de exercícios formais próximos do que se designa de letrismo ou grafismo, antecedidos de três textos teóricos visivelmente petulantes. (...) O letrismo pretendeu-se poema. Por aqui ele se condenou a si próprio. Um poema que não significa nada não é um poema, porque não é linguagem.» E assim por diante.


E no entanto as experiências de Ana Hatherly, e outros, de modo nenhum são novas em 1970. Desde 1958 que a autora vinha, com alguns outros poetas experimentais portugueses, e não só – Salette Tavares, E. M. de Melo e Castro, Alberto Pimenta, António Aragão, etc. –, subvertendo os cânones mais conservadores das poéticas e minando inteligentemente os alicerces esburacados de muita poesia neo-realista e neo-romântica. Uma dessas minas, das mais importantes em toda a poesia experimental e concreta nacional e internacional, é precisamente a que tem a ver com os novos modos de significar, com aquilo a que a própria Ana Hatherly, já em 1966, chamava «a maldade semântica», comentando: «As palavras não servem para descobrirmos o que não sabemos, visto que as palavras só dizem respeito a si próprias. A contemplação tem sido sempre uma espécie de gelatina. A não-efusão podia muito bem agora tornar-se uma espécie de geleia do real. (...) A poesia tem sido uma arte verdadeiramente animal, porque tem sido uma fiel expressão do sentimento...»
Por esses anos, entre finais de 50 e 70, a poesia de Ana Hatherly torna-se verdadeiramente inteligente. Inteligente é talvez o adjectivo que melhor espelha e mais justamente se aplica à sua poesia – e até à sua pessoa, alguém com quem privei de perto durante anos, e que punha grande rigor e simplicidade em tudo o que fazia. Ora, a crítica mais convencional e convencionada nunca entendeu o sentido e o alcance desta retirada inteligente da prisão semântica, para que a palavra respirasse livremente nos seus espaços próprios, os da significância, mas não necessariamente do significado. Foi uma escolha, aliás não limitada à poesia dita experimental e concreta desses anos (à sua maneira, também a chamada «Poesia 61» deixou para trás o peso de uma semântica das evidências ou das convenções para se aventurar pelos territórios mais inóspitos, mas mais inovadores, de novas formas de sintaxe e de visualização do verso). Mas, que significa, afinal, essa inteligência particular da poesia de Ana Hatherly? O Torrinha dá as raízes latinas e atribui à palavra, entre outras acepções: «capacidade de discernir», de «escolher (mentalmente) entre», e ainda «percepção (pelos sentidos)». E por que é a mão de Ana Hatherly inteligente? Que tipo de inteligência é o seu? Não é certamente apenas o de uma lógica mental fria e abstracta, é antes o de uma metalógica que trabalha nos espaços entre os sentidos e as formas sensíveis (visuais) das palavras. E também, a acompanhar uma grande capacidade artesanal e de invenção, o de um olhar subtil sobre a «geleia do real» e, do outro lado, o universo das palavras feito de tramas e traços, de humor e finesse entre o perspicaz e o quase absurdo (por exemplo nas Tisanas, mas também em alguns poemas-ensaio). Ou então é a pura imagem-em-situação na teia aparentemente discursiva, mas toda ela visual, do poema – no poema visual, uma situação simultânea no espaço e no tempo. O realizador do filme Ana Hatherly. A Mão Inteligente (2002), Luís Alves de Matos, di-lo numa frase com que apresentou o filme no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian: «O fazedor de imagens reinventa uma forma de liberdade elevando ao grau de memória os objectos que cria».

 
(Pode ver-se o trailer deste filme aqui: http://vimeo.com/21200605)
Essa memória é, em Ana Hatherly, a de um regresso a formas originárias, arcaicas, de relação entre a escrita e a imagem, bem patentes neste livro da editora Pagine d'arte, onde lemos, num dos poemas traduzidos por Catherine Dumas (que já havia traduzido antes uma selecção de textos de Ana Hatherly com o título Théâtres de la parole, Ed. Vallongues, 2002): «a palavra-escrita é um labor arcaico...» Ana Hatherly deixou clara, numa linguagem sem ambiguidades nem retóricas ocas, mas subtil e inteligente, como é sempre a sua, essa relação e a deriva própria de toda a sua Obra, no catálogo da grande exposição Obra Visual 1960-1990 (no C.A.M. da Fundação Gulbenkian, em 1992), quando escreve aí: «O meu trabalho começa com a escrita – sou um escritor que deriva para as artes visuais através da experimentação com a palavra». E logo a seguir: «O meu trabalho também começa com a pintura – sou um pintor que deriva para a literatura através de um processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes.»

Da exposição Hand Made, 2000

E assim se explica toda uma Obra e a sua retirada para fora do campo armadilhado da «maldade semântica», que a crítica não entendeu. É que, diz Ana Hatherly num fragmento também incluído em L'invention de l'écriture, «eu escrevo para dizer o que não pode ser dito.» Ou, por outras palavras, num poema bem mais tardio, mas que reitera coerentemente os seus princípios orientadores de sempre (o poema «A mão que escreve», do livro A Idade da Escrita, 1998):
Por entre incríveis e encantados freios
a mão que escreve
ilumina
da simples palavra
o trabalho obscuro em seu dentro.



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