09 junho, 2013

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DOIS REGRESSOS:
HERBERTO ESCRITO A LÁPIS

Um bom pretexto para o meu regresso a estas páginas de escrita a lápis, num tempo de incontáveis servidões e pouca liberdade, e ainda menos de verdadeiros lugares de escrita: o regresso de Herberto Helder com Servidões (Assírio & Alvim), livro escrito a esferográfica que prolongarei a lápis, sem pretensões de fazer crítica, muito menos de elaborar ensaio, fixando apenas alguns ímpetos derivados da leitura. Como talvez seja sempre melhor para a poesia, para esta em particular.


O «prefácio», que é todo o livro  («Todo o livro vai sendo o seu prefácio...», 15) é uma arte poética (sem surpresas, talvez apenas com o eu mais à vista), como outras que conhecemos de livros anteriores, que os abrem nesta forma da prosa (O Bebedor Nocturno), ou já de poema (A Colher na Boca), ou por eles se vão disseminando. Uma arte poética que recupera textos anteriores dispersos por livros e revistas, e em que alguns trilhos dessa poética, que é ao mesmo tempo uma arte de vida, são postos claramente à vista, e abrem para quatro veredas: a infância, paradigma absoluto da origem («Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência»); a força do orgânico, também, e para o poeta sobretudo, na linguagem í«A vitalidade nominal é intrínseca, metabólica»); as «magias» e a sua ordem («... um mundo de imagens orgânicas. Era a ordem ininterrupta das magias»); e o «início perene do poema» («Porque o prestígio da poesia é menos ela não acabar nunca do que propriamente começar»).
Depois, damos com um balanço de vida, de um destino que a si mesmo se foi fazendo («creio haver quem nasça de si próprio»), mas que a epígrafe logo parece vir desmentir («dos trabalhos do mundo corrompida / que servidões carrega a minha vida»), criando uma tensão que os poemas explorarão em múltiplas variações.


Os poemas trazem-nos os grandes temas de Herberto: as mães e o sangue, o sexo e a morte, a «vida airada» e a escrita «em verbo arcaico». Agora, mais do que antes, o poema diz eu, vê-se entre o nome e o eu; e regressa a vontade de ver e dar a ver aquilo que é único, a «agaué» «que floresce uma só vez na vida» (43), os grandes ciclos cósmicos, as coisas «em estado de milagre» e «o terror da beleza».
[E aqui são mais ainda os circunflexos transgressores que já lhe conhecemos – «cômo-te», «êrro absoluto», «sêlo frio», «comêço» –,  chapéus à sombra dos quais se acolhem vogais que assim ficam mais maduras e cheias, como corpos de mulheres inconfundíveis, desejáveis, insusceptíveis de serem desvirtuados pela semelhança que anula singularidades.]
E também o poema continua a ser assim: animal resfolegante de contornos precisos, agora mais «económico, íntimo, anónimo» – a brevidade impõe-se, como em Hölderlin, porque, escreve este, «Fria está a terra / E, importuna, a ave da noite / Volteja diante dos teus olhos». Repetidamente, o olhar cai no espelho, para (não) saber quem é. Autodevorando-se e renascendo, não das próprias cinzas, mas do próprio sangue, não para aí se esgotar, porque vem de longe e de muito fundo, a sua força e razão de ser em si mesmo ainda e sempre, «vazio poema de sentido e de endereço» (50), «só porque sim» e «não agora», mas quando soar a sua hora – como coisa que nasce, mas construída (E isto é possível? Aqui se vê que é).
O poema vai-se definindo, mais por intuições do que por definições, e tende para o poema mais curto, «tão directo que não fosse entendido». Para trás ficou a «língua voraz», busca-se agora a «voz paupérrima», corpo visível e audível da nostalgia da língua certa, certeira, única, singular, sem demónios da analogia nem metáforas, insusceptível de tradução, de imitação, de repetição – a língua do poema absoluto de Celan? Aquela que não dissesse a coisa, mas a mostrasse, confundindo-se com ela? («Quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba, / e falar nela de tudo o que não faz sentido», 57). 


Este é um livro da espera – da espera da morte perfeita, no acto de escrever esse poema absoluto. E a certa altura (nas pp. 60-61), tenho a intuição de que esse poema nasce, está aí, desafiando a própria morte, liberto de se pensar a si próprio, sem meta (no duplo sentido da palavra-prefixo). E no entanto, o ser-do-poema é uma obsessão neste livro. Ei-lo que regressa logo na página seguinte, abrindo-se numa quase-definição lapidar como «organismo superlativo absoluto vivo»! Um concentrado que dá toda a poética de Herberto Helder desde os primórdios – o poema-animal, a construção orgãnica, o excesso bidireccional (o do em baixo e do em cima, o do dentro e do fora, o da música e do silêncio absoluto): «sem proporção alguma: e nenhuma / consolação da forma» (63). O informe não conhece equilíbrio, nem repousa em nenhuma espécie de forma. A densidade do pensamento poético, que é uma poética pensante nos veios, nas veias do poema, sufoca e esmaga. É preciso parar, respirar, regressar, sem sair do cerco armado pela sequência intensa que vem de um livro de sete selos (ou talvez, afinal, menos, comparado com outros: A Faca Não Corta o Fogo, Do Mundo, Última Ciência), com o seu fogo interior que a faca ainda não corta, os motivos de sempre, identificáveis, variando-se...

O saber do poema parece ter chegado a um lugar último: sabendo pouco, sabe-se fora do bolo da poesia dividido em quatro quartos, fatias mais ou menos da massa da imitação e dos fermentos da auto-ilusão. Este quer-se dentro da pedra que nasceu da montanha: o poema é o que se não mostra/expõe, é o que se recolhe ao interior de si mesmo, sem exterior («o imo do próprio nome assim metido na pedra», 72). Foge ao já visto, sabe o que não é, corre para a morte, numa corrida contra essa mais frequente «morte no gerúndio», para não «tornar académica a sua dor», afirmando a «ígnea pedra» contra a cegueira dos «burrocratas indizíveis» (85).
O lema agora poderia ser, não já o clássico ars longa, vita brevis, mas uma variante  neo-herbertiana dele: ars brevis ad mortem – a «técnica atenção da morte» que alimenta o poema curto. Ainda e sempre por trilhos de encantamento, mas não tanto do mundo e dos corpos, antes subterrâneo, invisível e sereno, já no limite do des-encanto de quem sabe que o resto do caminho é curto, breve, e joga o «exercício da faca – exímio, exímio», que «despedaça os selos» e, no poema, «apura têmpera e talento» (66).
Estamos também, já o disse, diante do resumo de uma vida, a da escrita e a outra («a minha vida como nota»), e agora «um pequeno poema basta para meter tudo lá dentro», quando antes navegávamos com mais frequência por rios torrenciais. Estamos no lugar da visão que o enforcado tem no último segundo, o da grande síntese de toda uma existência que não cabe – paradoxo dos paradoxos! – no fluxo contínuo do tempo da vida. E há nisto uma sabedoria imensa da vanidade do tempo, mas também uma luminosa lucidez (assim mesmo, pleonasticamente) assustadora que nos vem dizer que «dobrados os oitenta» «o mundo é pequeníssimo» (90-91). E o que dele ficou é este inverno do nosso descontentamento, «esta montanha de merda» que nos foi legada por uma «geração inteira, / inclitamente vergonhosa». E então um testamento de desencanto e lucidez desemboca subitamente no poema político, agora de novo mais longo, vasculhando e exorcisando os avatares e os mais fundos arcanos deste tempo que não sabe o que isso é, e em que muitos pensam que é melhor ter este inferno do que ter coisa nenhuma (aqueles a quem o nada apavora, como os apavora a solidão cuja força desconhecem). São os «castrati que cantam a capella» e «organizam a morte», as nossas morte a prazo, – mas no poema ela é outra, faz parte da sua arte da respiração.

(Fotos de glaciares: Anabela Mendes)
Por isso o poeta vai preparando nos últimos poemas o seu próprio epitáfio – bem diferente daquele outro, célebre, de Brecht, que «não precisava de pedra tumular», mas aceitaria uma que dissesse: «Este fez propostas. Nós / Aceitámo-las. / Uma inscrição dessas / Honrar-nos-ia a todos». Aqui, o registo é outro: não há propostas, há o deliberado e irónico falsete de uma erudição trágica que coloca vida e morte em nota de pé-de-página, antes de ser recebido, já cinza, como «ambrosia sutilíssima nas profundezas dos esgotos», «enfim liberto do peso e agrura do seu nome». Para, por fim, poder «arvoar», com uma única lamentação, num poema quase último que é um trenos ao seu próprio corpo, uma vez esquecido e apagado o nome. O poema da grande perda e da grande lacuna, a única, afinal, a de «não ter escrito o poema soberbo sobre o fim da inocência, / da aguda urgência do mal» (108).
E estamos de novo no «prefácio», e o eu que aqui fala num misto de ira, júbilo e resignação regressa, limpo de escórias e disposto ao diálogo com a grande ceifeira, inominável e desde o início nomeada, a «morte incalculável» que o poema, incrédulo e insistente, ainda e sempre supera, chegado que foi à consciência «do incrível natural de ser olhado assim por ela» (109).

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