01 dezembro, 2020

 MON MAÎTRE À PENSER

A notícia, esperada mas não desejada, chegou. A Parca cortou o fio ao pensamento de Eduardo Lourenço.

Regresso ao meu ensaio «As pedras brancas de Eduardo Lourenço», e encontro dentro do livro (O Género Intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento, Assírio & Alvim, 2010), a abrir a secção «Afinidades Electivas», uma série de folhas manuscritas com o título «Mon Maître à penser», que a princípio me surpreendem, porque não me lembrava delas nesta forma, nem já sabia que as tinha deixado junto do ensaio anterior.

Reproduzo-as aqui, em memória do Mestre, com a transcrição do texto, um depoimento sobre esta figura do pensar, decisiva na minha vida de escrita, para a revista Textos & Pretextos, o número 22/2019, dedicado a Eduardo Lourenço.

 

«Mon Maître à penser»

 

Tenho consciência de que tudo me é pretexto para não falar de mim.

Ou seja: para falar incessantemente de mim.

É por isso que a minha escrita é lírica e passional.

(Entrevista, JL, 6 de Dezembro 1986)

 

            A certa altura do meu percurso mais livre pelos caminhos desse género intranquilo a que chamamos «ensaio», dei-me conta de que essa libertação se devia em grande parte à convivência e assimilação de modos de escrita e de pensar de alguns outros – entre eles, e em lugar de destaque, Eduardo Lourenço, a quem passei a chamar o meu «Maître à penser». Um mestre da «vida interior pairante», como sugere Musil a propósito do ensaísta. Um mestre que não poderia impor um modelo, antes um modo, já que ele mesmo se perde no labirinto interior dessa aventura, um caminho onde não há certezas – a não ser a da morte («Na minha espécie de prosa, um pouco pretenciosa e poética, o único tema verdadeiramente sério é a morte», diz Eduardo numa entrevista recente a propósito desse inenarrável filme que se chamou O Labirinto da Saudade).

 

            O ensaísmo múltiplo e uno de Eduardo Lourenço revelou-se-me assim, um dia, como instável e agónico (mas não «trágico», nem feliz), feito, como do poema dizia Hölderlin, de cálculo (que estrutura o pensamento sem o manietar) e asas (que o aproximam, em sobrevoo, dos objectos da sua nostalgia). A sua via é exploratória, e a não-verdade, a «instabilidade ontológica» da pulsão ensaística, é o seu telos. O de um único ensaio contínuo, uma grande sinfonia que permite, desde Heterodoxia, ouvir os ecos de uma música total. O que lhe confere a unidade quebrada, em andamentos, que o caracteriza, é da ordem de um methodos, de um caminho próprio que dá a ver em cada texto, no filtro depurado da linguagem, um pensamento clarividente e uma postura de fundo na relação com o mundo – o das artes e da literatura ou o da História, o de uma mitologia portuguesa ou o das razões de uma Europa entre eufórica e desencantada. Tudo como quem se vê ao espelho: o ensaísta arma o cerco ao seu objecto, e ele revela-se no seu âmago, por uma espécie de epifania profana. «O ensaísta», diz o Maître, «fala de si mesmo como espelho do mundo» – o mundo que sempre nos excede. Daí o desafio de o dar a ler, que em Eduardo Lourenço vem cedo, provavelmente no momento em que toma consciência de que a sua via, e a sua veia, não seria tanto a filosófica como a de uma poética pensante. Por isso, como o herói do conto maravilhoso, sai um dia para o mundo «para aprender o medo» – melhor, para sentir nascer em si essa consciência crítica e ousada da natureza insondável das coisas e dos homens. 

 

    Valeu a pena a viagem. Imagino por vezes Eduardo Lourenço à imagem do Saul do Antigo Testamento: saiu de casa – de um S. Pedro de Rio Seco onde, confessa em conversa recente com Edgar Morin e Ana Marques Gastão, era «a criança que nunca fui» –, foi em busca das jumentas do pai, e encontrou um reino: o reino de tudo o que é humano, o reino sem limite das ideias. Nesse reino, um sujeito cedo ganha uma voz própria, e essa voz pensante torna-se autónoma, assume-se sem sujeito. Ao olhar para o espelho do mundo não se vê já a si, mas a esse mundo e aos seus labirintos da existência, numa espécie de «peripécia da inteligência» que é o próprio do ensaio como o vê Claudio Magris. É o ensaísta que soberanamente (mas sempre com a dúvida latente, se bem que não metódica, que o guia) domina o mundo, e no caleidoscópio da escrita faz fulgurar sempre novas conexões – enriquece e amplia o mundo ao pensá-lo. Este será um dos lados mais surpreendentes do pensamento ensaístico, e ensaiante, de Eduardo Lourenço: o deste seu lado de hipertexto, movendo-se numa rede de ideias, mais estética do que filosófica, a que um dia, referindo-se precisamente à arte, chamou «a Internet de Deus».

 

            Poderíamos também dizer (com o Herberto de Cobra) que estamos perante «o nó absorvendo a madeira toda». É assim que, olhando para trás, vejo hoje a Obra de Eduardo Lourenço: como uma Obra de pensamento total e totalizante, e que no entanto sempre soube que não se pode apreender e interpretar o mundo, mas tão somente as aparas que dele nos chegam e vamos apanhando e tentando compreender. Não existe uma obra «sistemática» de Eduardo Lourenço, porque ele sabe, como Wittgenstein (ou Llansol), que o mundo não tem sistema nem «forma», é apenas «o que é o caso», o que nele acontece e tem consequências. Uma delas, nada despicienda num caso como o de Eduardo Lourenço, é a de «o que acontece» vir ter com o sujeito pensante, que, sem sistema conceptual nem Weltanschauung na manga, interpõe entre si e o mundo um recuo, deixando que o tempo faça o seu papel – ou também a distância no espaço, própria de alguém que se vê como um «exilado cá dentro», da estirpe daqueles que sempre melhor nos pensaram, de forma inquieta, dividida, e mais serena. Recusando o epíteto de «estrangeirado», Eduardo Lourenço escreve: «Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu país» (O Labirinto da Saudade). De qualquer modo, o importante é perceber como Eduardo Lourenço, quando pensa e escreve, não se orienta por nenhum «sistema», antes se deixando guiar por algo assim como o «esquema» kantiano, que, enquanto forma de intuição apurada, rege de longe, ou de dentro, a observação dos factos e um registo muito próprio, e essencial, daquilo que, no mundo, se oferece à nossa possibilidade de conhecer. É isso talvez que nos faz sentir, lendo ou ouvindo Eduardo Lourenço, aquele «entusiasmo do pensar em que as palavras se abrem até ao fundo», tão diferente do discurso conceptualmente organizado e frio, e que uma vez mais Musil vê como próprio do ensaísmo.

            Parece-me existir aqui uma dimensão universal do pensamento de Eduardo Lourenço que não se compadece com leituras que o remetem para a condição de exegeta privilegiado de um destino nacional. Privilegiado, é-o certamente. Ele próprio, na sua proverbial modéstia, parece sugeri-lo quando confessa, a propósito do significado desse livro-chave para a compreensão do nosso processo de individuação colectiva, ou «psicanálise mítica», que foi O Labirinto da Saudade: «O essencial do que eu sou, ou posso ser aos olhos dos outros, é o que está nesse livro...» (JL de 9 de Maio 2018, entrevista a José Carlos de Vasconcelos). Mas, de facto, é muito mais. O seu pensamento, o seu estado permanente de ensaio do pensamento, transcende em muito essa dimensão doméstica. A seguirmos por aí, a pedra de toque mais reveladora deveria ser então a do seu Pessoa, por ele mais do que uma vez revisitado para no-lo dar como todo um mundo, ou vários mundos num só e com um centro lúcido, sempre muito além do «caso mental» de um «Portugal dos pequeninos». Mesmo como «rei da nossa Baviera», o Pessoa de Eduardo Lourenço é o grande paradigma de uma universalidade, rara nestas paragens, e de que o próprio Eduardo Lourenço é mais um grande representante, ele também uma «vida sem país», que exemplarmente pensou e representou este país, e essa vida, como «um sonho dominado» (diz na referida entrevista). Como Pessoa, Eduardo Lourenço é o ensaísta-poeta para quem Portugal funcionou como uma espécie de metonímia, um mundo que reflecte o estado do mundo, lido quase sempre ex negativo, ou pelo menos com aquele substrato de ironia kierkegaardiana presente em ambos. Ao ler-nos, e aos nossos desastres, Pessoa e Lourenço fazem-no com recurso às figuras dominantes da antítese e do paradoxo, do oxímoro e da ironia construtiva que os lançam para os terrenos de uma escrita e de constelações de pensamento típicas daquela écriture du dés-astre (Blanchot) que os coloca fora das órbitas habituais, sem referências nem «pares», em pleno espaço da heterodoxia. E isso só é possível em escritores pensantes do próprio pensamento, e abertos ao real como um campo de possibilidades, e não de meros «factos diversos», faits divers tomados como tal. Foi assim que Eduardo Lourenço se definiu um dia a si próprio, enquanto ensaísta: «Alguém disponível para pensar o que merece ser pensado, e mesmo o que não merece ser pensado»!

            A fórmula podia ser pessoana, e serve para definir exemplarmente o modo de pensar e escrever de Eduardo Lourenço: da impenetrabilidade do mundo nasce a luz que abre o objecto, o ilumina de todos os lados e dá a ver a essência poliédrica das coisas do mundo que nos envolve e para nós apela.

 

            Era isto, entre tantas outras coisas possíveis, o que eu queria dizer, e mal disse, sobre o meu «Maître à penser» Eduardo Lourenço.

 

João Barrento

21 novembro, 2020

 NOS 100 ANOS DE PAUL CELAN

No dia 23 de Novembro celebramos o centenário do nascimnto do grande poeta Paul Celan.

O video de homenagem que fiz pode ser visto clicando neste link:   https://vimeo.com/480515868

01 outubro, 2017

«VER COM O CORPO O CORPO ILUMINADO»


A revista online eLyra fez sair o seu número 9, que abre com um ensaio meu que busca responder à pergunta: o que é isso de traduzir poesia [de] hoje?

17 janeiro, 2017

AS MULHERES DA CHAUSHEVA (E EU)
ou: 
O DESEJO – «IMÓVEL E EM PARTE ALGUMA, INSTÁVEL E EM TODA A PARTE»

Elas olham-me do écran do computador, mostram-se deitadas, dobradas sobre si mesmas, deixam ver mãos, pernas, o aflorar dos seios, rostos enigmáticos, belos, todos eles, a partir de fotografias que são quadros pintados e encenados, como um filme de Sokurov, recusas frontais, misteriosas e delicadas, do verismo fotográfico e dos risos alarves das selfies e da publicidade. Desfilando em sequência aleatória no meu screensaver, elas olham-me. Na verdade, quase nunca me olham. Voltam-me as costas, olham de lado, descortinam horizontes que eu não sonho, baixam os olhos. 
No território do livro que é o meu, invadido pelas suas sombras, eu sou sombra maior, quase invisível, e elas, todas, o lugar do assombro. Mas eu estou sempre lá, entre elas, em fundo, reflexo que lhes devolve o olhar, ou que olha quem as olha. Como o pintor e o anão nas «Meninas» de Velásquez. Duplo voyeurismo, vários olhares cruzados. Mise-en-abyme de mim mesmo, abismado diante do mistério da beleza, de uma fascinante e quase insuportável leitura da alma feminina na atracção acetinada ou angulosa dos corpos.
E dou por mim a ler:
… o vestido entreaberto… a blusa a descer do ombro… o grito dos vermelhos… os lírios brancos de uma ausência… os envois a Magritte… os olhos baixos da melancolia… os corpos fortes, angulosos ou frágeis como as flores ao vento… os ambientes entre o decadente e o natural, o démodé e o requintado… os milénios nos olhares das mulheres… as sombras e o corte da fotografia… o toque sensual dos frutos no corpo nu…
O resto está no video que se segue:

15 janeiro, 2017

A MAGNIFICAÇÃO DO FEMININO

O que de mais belo vi e ouvi no meio da desconversa sobre romance e não-romance, foi a música que emanava das costas nuas de uma mulher sentada à minha frente. A linha do ombro, o colo esguio, o tom da pele, a pose distante num sorriso entre o tímido e o irresistível_____ eis a imagem imperfeita desta iluminação.
(Numa livraria de Lisboa, pelos finais de 2013).

Fotos: Katia Chausheva

14 janeiro, 2017

KARL KRAUS E OS ÚLTIMOS DIAS DA HUMANIDADE


















06 janeiro, 2017

«QUARTA-FEIRA DE CINZAS»

Volto ainda a Eliot, e àquele seu poema «a meio da vida» (como outro célebre, de Hölderlin*), a que chamou «Quarta-feira de cinzas». Não estamos em quarta-feira de cinzas, mas o facto é que neste tempo borbulhante domina o cinza. Daí que me tenham vindo, novamente, ecos do poema de Eliot, que tem muito a ver, na sua serena nostalgia e no seu olhar desencantado sobre o mundo, «o conhecido reino», com o momento que atravessamos. Ou pelo menos com o modo como eu vejo hoje este nosso momento (nosso? meu não é certamente!), tomando-o pelo que ele é, mas procurando sempre os caminhos que levem à sua mudança, ao fim desta interminável quarta-feira de cinzas em que vivemos mergulhados há anos, para retomar o júbilo possível e a festa – sem o espectáculo ruidoso do mundo. Esse «usual reign», esse mundo dos outros, distante e aqui tão perto, era também o outro lado do muro do «jardim abismado» de uma poeta tão próxima de Eliot como Emily Dickinson, e matéria do seu desencanto, que compensava perdendo-se no êxtase da grande e da pequena Natureza. Ou de Pessoa, ouvindo os ecos da «vida» do outro lado do «muro branco do quintal». Do outro lado desse outro lado está o «jardim abismático» de Llansol, onde também habito mais hoje, aquele que permite o pensamento (ou vice-versa, para os que fazem do pensamento a sua festa) e se inunda de luz, apesar de tudo e contra tudo…

Eliot revela-se assim, mais de meio século depois, uma voz do nosso próprio tempo, mais do que muitos dos que nesse rio se banham e nele se sentem em casa

               * Com suas pêras douradas inclina-se
                        E cheia de rosas bravas
                        A terra sobre o lago,
                        Vós, graciosos cisnes,
                        Ébrios de beijos
                        Mergulhais a cabeça
                        Na água sagrada, sóbria,

                       Ai de mim, aonde irei buscar,
                       Quando for Inverno, as flores, e onde
                       A luz do Sol,
                       E sombras da terra?
                       Mudos e frios erguem-se
                       Os muroas; na aragem
                       Rangem os cataventos.

«Ash Wednesday» na minha tradução e leitura:



04 janeiro, 2017

PRUFROCK E OUTRAS COINCIDÊNCIAS

No dia em que circulam notícias sobre a leitura de poemas de Eliot, a começar com «A canção de amor de J. Alfred Prufrock», que Jeremy Irons fez na BBC-Radio, estou eu também, por uma dessas coincidências que só os céus poderão explicar – se tiverem engenho e arte para isso –, a retraduzir, sem finalidade nem objectivo à vista, alguns poemas de T. S. Eliot. E a rememorar os anos de juventude em que este poeta foi a pedra angular da minha descoberta da poesia moderna. Eu lia os poemas de Eliot no comboio, na praia, onde calhava, e pasmava com a linguagem liberta dos padrões de romantismos requentados que enchiam o meu redil da poesia portuguesa. Estes saltavam as cercas, lançavam-se a correr pelos campos do quotidiano, não receavam ser vistos como não-poesia, e ao mesmo tempo mergulhavam, e a nós com eles, nos grandes temas do humano e do mundo. E eu, nos meus vinte anos, escrevia pastiches sobre os «Homens de palha» do Chiado lisboeta e as minhas próprias «Canções de amor…».
Hoje resolvi ler em voz alta e gravar «A canção de amor de J. Alfred Prufrock», e eis que a leitura, a do grande actor britânico e a (humildemente) minha, se põe a ecoar nas duas línguas. Aqui fica, em versão verbi-voco-visual...
A de Jeremy Irons pode ouvir-se aqui: http://www.bbc.co.uk/programmes/b086l220?platform=hootsuite
e a minha própria no video que se segue:



27 outubro, 2016

ENTRE VIRGINIA WOOLF E RILKE
ou: do fascínio da grande metrópole ao enigma da paisagem


Teve lugar ontem, na Livraria Bulhosa em Lisboa, o lançamento de mais dois títulos da colecção «Viagens & Literatura», da editora Feitoria dos Livros (Sintra): Fantasmagorias: Deambulando pelas ruas de Londres, de Virginia Woolf, com prefácio e tradução de Maria Etelvina Santos; e o ensaio de Rainer Maria Rilke sobre a colónia artística de Worpswede e a pintura de paisagens, com o título português Viagem Singular a Worpswede, que eu próprio traduzi e fiz acompanhar de um ensaio introdutório. A editora, Maria Rolim, abriu a sessão, e na conversa em torno deste do livro de Rilke participou ainda o pintor João Queiroz.
Transcrevo a seguir uma pequena parte dos textos prefaciais aos dois volumes, que poderão aguçar o apetite de interessados e potenciais leitores.



«Basta o enigma...»
Rilke e as paisagens de Worpswede 

Não importa quem és: à tarde irás sair
da sala que já sabes de cor; ao rés
do horizonte é a última a surgir
a tua casa: não importa quem és.
Com os teus olhos que, cansados, mal
se libertam da soleira pisada,
lentamente ergues a árvore negra, qual
marco contra o céu: esguia, isolada.
E assim criaste o grande, o imenso mundo,
como a palavra no silêncio a crescer.
E quando a tua vontade começa a entender,
teus olhos docemente o vão deixando
(Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens)

A árvore que, longe do mundo conhecido e seguro, se perfila no horizonte, solitária em toda a sua estranheza tão familiar, é o enigma imperscrutável que a palavra diz (no poema em epígrafe) ou a imagem mostra (nas pinturas dos artistas de Worpswede, de que fala o texto de Rilke), sem com isso penetrarem minimamente o seu mistério. Um dia, quando já julgamos ser sábios, uma espécie de verdade precária parece soltar-se das coisas do mundo a que chamamos «natureza» – mas é tarde de mais, uma vida inteira não chegará para conhecer o Aberto que só o bicho vê, a criatura, talvez a criança, e que o olhar da arte por vezes intui.
Rilke sempre soube que assim era: neste texto de 1902, que pela primeira vez aqui é dado a ler em português, como também nas mais tardias e conhecidas Elegias de Duíno, em particular na oitava, onde, vinte anos mais tarde, lemos:

                        Com todos os olhos vê a criatura
                        o Aberto. Só os nossos olhos estão
                        como que invertidos, fechando-se sobre ela
                        [...]
                        O que fora de nós é, só o sabemos pela
                        face do animal: desde pequena, levamos
                        a criança a olhar para trás e obrigamo-la
                        a ver a Forma, não o Aberto...

Estamos no centro do tema que ocupa Rilke neste ensaio, o da relação, por contraste e interdependência, entre Natureza e Paisagem. A natureza participa do Aberto, mas não tem forma (porque a sua lei é a da metamorfose); a paisagem já não conhece o Aberto, porque se tornou uma espécie de segunda natureza, de que também a arte tende a aproximar-se.
Na sua indagação sobre os enigmas daquilo que dá pelo nome de «natureza», Rilke inicia uma estranha viagem pelos trilhos de um reino hostil que «nada sabe de nós», nem quer saber, impenetrável, e onde corre uma vida que não é a nossa.
Quando, em Março de 1901 (e depois de duas estadas curtas, em Dezembro de 1898 e Setembro de 1900), chega à colónia artística de Worpswede para aí permanecer até Agosto de 1902, Rilke traz consigo as fortes impressões de uma natureza que não será alheia ao seu interesse pela paisagem plana e pantanosa do Norte da Alemanha: acabara de fazer, em 1899 e 1900, duas viagens à Rússia na companhia de Lou Andreas-Salomé. Dessas viagens, em especial da segunda, que faz apenas com Lou, entre Maio e Agosto de 1900, percorrendo centenas de quilómetros na grande estepe russa a sul de Moscovo, traz Rilke duas experiências marcantes, que certamente influenciaram também a sua atracção pelas paisagens e pela gente da região do chamado «Pântano do Diabo»: a vastidão da grande planície russa e a veneração pela vida simples dos camponeses que tem ocasião de conhecer através de Tolstoi, que visita, com Lou, na sua propriedade de Jasnaja Poljana. Aí (e nas próprias obras de Tolstoi, que lê antes, algumas em russo) se terá apercebido dessa dimensão inapropriável das coisas grandes e pequenas do mundo, planície e céu (respectivamente «a solidão e o gesto» da grande natureza) por um lado, o rosto imutável dos camponeses e do mundo do trabalho, por outro.
O lugar que Rilke descobre mais de perto depois do regresso da Rússia – e onde encontra aquela que se tornaria sua mulher em Abril de 1901, a escultora Clara Westhoff, que fora discípula de Rodin em Paris –, esse lugar isolado, todo voltado para o trabalho nos campos e no pântano, ganhara desde 1889 um outro rosto, artístico, com a fixação, na pequena localidade de Worpswede, de um grupo de pintores desencantados com a estreiteza das academias (e também de uma pintora, Paula Becker, que haveria de ser, entre todos, aquela que mais claramente anunciava a grande revolução expressionista). O pioneiro desse núcleo artístico (que se manteve até hoje), o pintor Heinrich Vogeler, de entre todos ainda o mais ligado ao estilo e aos temas do Simbolismo e da Arte Nova (e que Rilke verá como o menos aberto e livre desses jovens «em devir»), convidara já em Dezembro de 1898 Rilke a fazer uma primeira visita a esses lugares. A viagem que aí se inicia, se continua pela Rússia de Tolstoi e pelo problemático amor por Lou Andreas-Salomé, para regressar à estranheza da planície pantanosa dos pintores de Worpswede, é uma viagem interior (como quase sempre em Rilke – apesar das muitas viagens que faz por toda a Europa, da Escandinávia à Espanha, da França à Rússia, dos muitos lugares e castelos do Império Austro-Húngaro aos da Suíça e de Itália...), que leva o jovem autor à tomada de consciência da natureza incognoscível das coisas, mas também de que a arte será a única via que permite uma aproximação a esse mistério. Por esses anos, estas ideias, que o ensaio sobre Worpswede elabora através de um triplo olhar – analítico, em relação às obras dos pintores do momento e do lugar, histórico, quando evoca exemplos da pintura paisagística do passado, desde Rembrandt e Ruisdael, e mesmo etnográfico, quando, com a paisagem, se detém nas vida e nos lugares daqueles que a habitam –, tais ideias irradiam também para a poesia que Rilke vai escrevendo, numa unidade indissociável com os ensaios de prosa, sobretudo aquela que iremos encontrar na segunda parte do Livro de Horas («O livro das peregrinações», escrito entre 18 e 25 de Setembro de 1901 em Westerwede, a aldeia vizinha de Worpswede, onde vive depois do casamento com Clara), e mais ainda n' O Livro das Imagens, em alguns dos poemas escritos também aí em 1902, como este, em que ecoam os temas de fundo do ensaio:

Cai a tarde
(Abend)

Lentamente muda a tarde a roupagem
Que do renque de árvores velhas sai;
tu olhas: e acontece dos reinos a clivagem:
um que sobe para o céu, outro que cai;

não pertencendo a nenhum, irás ficar
não tão sombrio como a casa em silêncio,
não tão seguro que possas invocar
o eterno: a noite, a estrela, o céu imenso___

e o que fica (o enigma a descobrir)
é a tua vida: um medo, um mundo, um fado
que cresce, ora beco, ora luz a abrir,
e em ti oscila, entre pedra e céu estrelado.

            Este poema diz, como tantos outros de Rilke, a solidão essencial do indivíduo dividido entre o seu corpo e a imensidão do mundo. 
[…]
J. B.








Prefácio
  
Ah!  Como  é grande o mundo  à luz dos candeeiros!
Baudelaire 
Londres exerce sobre mim uma atracção perpétua, um estímulo.
Virginia Woolf 
Tornei-me um instrumento muito percutente, à entrada do mundo,
quer ele seja a cidade, a espera, a secretária, a partida ou o regresso.
Maria Gabriela Llansol
          
 «Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!»


O título acima, retirado de um verso do poeta Cesário Verde, faz-nos pensar numa noção de viagem que ilusoriamente parece não andar longe do modo como muitos dos chamados turistas desfilam hoje pelas capitais mais mediáticas, talvez já não as mesmas referidas por Cesário, mas as cidades que são ditadas pela moda. A mercadoria, que nesse mesmo século XIX se convertia cada vez mais em fetiche, como já na época Baudelaire deixava escrito, transformaria a paisagem das cidades que a ela foram sucumbindo cada vez mais. No entanto, apenas percorrendo demoradamente a cidade de Lisboa a diferentes horas, Cesário sabia viajar pelo mundo, pois muitos dos seus versos são paralelos aos de Baudelaire ao percorrer as ruas de Paris, então a grande metrópole europeia. Sem sair da cidade, ambos viajam, como no início do século XX fará Fernando Pessoa sem sair da Rua dos Douradores, em Lisboa, ou através dos versos de Álvaro de Campos em quem a vontade de partir é constante, sem conseguir largar o Cais das Colunas. Confinados ou não à cidade, legaram-nos uma noção de viagem literária na qual hoje nos seria muito útil pensar — a capacidade de, sem descurar o rigor descritivo e a análise, fazer uso da imaginação e pô-la ao serviço do sonho, não para fantasiar ilusões, mas para tornar possível o que o real não oferece e através da imaginação pode ser criado. Não é a noção de entretenimento que serve ao texto literário, mas a capacidade de produzir sonho e criar improváveis. A literatura nunca serviu para outra coisa, senão para criar mundos.
[…]
Uma cidade não é apenas uma referência geográfica assinalada num mapa. Uma cidade pode ser uma pausa no meio de um dia, um lugar de passagem e de metamorfose, um tempo presente atravessado por memórias. A cidade é um lugar, porque é encontro e experiência. É a presença do outro, ainda que se caminhe só. É movimento e viagem. Mas também imobilidade activa. Pode desenhar-se toda em cima de uma secretária, percorrer-se com os olhos, fechar-se inteira dentro da mão; ou ser inabarcável durante toda uma vida.
 Se dermos razão a Pessoa, viajar é perder países porque as imagens idealizadas se desfazem quando a viagem se concretiza na dureza do real.  Mas enquanto se perdem países, ou cidades, paradoxalmente, o mundo amplifica-se na experiência que se ganha. A falha não estaria na perda ou na imobilidade, mas na pobreza de experiência. Disto sabiam os modernos. Disto nos dá conta o texto «Deambulando pelas ruas de Londres», de Virginia Woolf. Relato experiencial de uma viagem tão enigmática quanto enriquecedora, a lógica deste texto parece ser subvertida desde o início: o desejo irreprimível de comprar um simples lápis é, afinal, um desejo de se perder pelas ruas, no meio da multidão, um desejo de viagem enquanto busca de experiência e conhecimento interior; o lápis é apenas o pretexto. Mas o que é um pretexto?  Quando a escrita do romance se começa a orientar, no início do século XX, por uma lógica que não obedece apenas ao carácter sequencial da narrativa, a cidade começa cada vez mais a mostrar-se em «frases vivas» (no dizer de Virginia Woolf) e como um dos grandes temas, podendo alcançar estatuto de personagem. Continuando o que o século XIX já iniciara — veja-se o caso de um escritor como Charles Dickens e as descrições da cidade de Londres em alguns dos seus romances —, as grandes metrópoles passam a merecer um desenvolvimento e protagonismo literário que ainda não tinham alcançado.
[…]

Em 31 de Maio de 1928, Virginia Woolf anota no Diário: «Londres exerce sobre mim uma atracção perpétua, um estímulo, oferece-me uma peça, uma história, um poema, sem que eu me dê a maior trabalho do que mexer as minhas duas pernas e caminhar pelas suas ruas». Entre esta página de Diário de 1928 e a anterior, de 1918, passaram dez anos em que Virginia Woolf, com a cidade de Londres sempre presente nos textos que escreve,  publica alguns dos seus romances mais emblemáticos, entre eles Mrs. Dalloway, cuja personagem principal não é apenas Clarissa Dalloway, mas também a própria cidade de Londres. Publicado em 1923, podemos considerá-lo ainda hoje o seu romance mais londrino. Clarissa, a protagonista, percorre muitas das ruas de Londres, referenciadas pelos seus nomes, pelas suas lojas, por um quotidiano que, por certo, ainda hoje não deixa indiferente qualquer visitante. Mas, neste romance, a cidade é ainda um grande políptico onde se juntam personagens de vários tempos que, ao coexistir na memória afectiva de Clarissa Dalloway, vão emergindo na tela por entre as ruas e os lugares como paisagens da alma. A cidade de Londres, onde Virginia Woolf viveu durante quase toda a sua vida, foi para ela um grande repositório de sinais; cidade que, por um lado, a recolhe e se fecha sobre ela segregando um mundo interior e, ao mesmo tempo, cidade que se abre, propiciadora de evasão e de construção de pensamento, quer este se orientasse por caminhos mais ficcionais ou mais ensaísticos. Em muitos dos seus romances, ou em textos mais ensaísticos e interventivos como Um Quarto Que Seja Seu, de 1929, ou ainda em textos breves aos quais é difícil atribuir um género específico, como este «Deambulando pelas ruas de Londres», a cidade está sempre presente, como um amigo que indiscutivelmente aceita o diálogo.
[…]

A personagem do romance moderno habita a cidade entre o real e a fantasmagoria. Se, por um lado, aceita percorrer a cartografia rígida da cidade e do seu quotidiano, por outro, não despreza o lado fantasmático que, para dar um mero exemplo, a iluminação pública ainda titubeante envolve em neblina e imprecisão. Entre o realismo e o visionário, a personagem põe ênfase na atenção ao instante, na intensidade do olhar e na permeabilidade do sentir, originando uma cartografia real e outra possível ou não visível, improvável portanto, na qual a noção de tempo também sofre alterações. Passado, presente e futuro interpenetram-se, ou são o eternamente presente. O tempo é indiscernível. A memória toma novos entendimentos face ao transitório e ao contingente; e o registo, a anotação, a descrição passam a ser os instrumentos do quotidiano. [ …]
Londres é pois, simultaneamente, matéria-prima, instrumento de registo e suporte onde se gravam as palavras. É a cidade como matriz da escrita de Virginia Woolf.
[…]
Maria Etelvina Santos