ENTRE VIRGINIA WOOLF E RILKE
ou: do fascínio da grande metrópole ao enigma da paisagem
ou: do fascínio da grande metrópole ao enigma da paisagem
Teve lugar ontem, na Livraria Bulhosa em Lisboa, o lançamento de mais dois títulos da colecção «Viagens & Literatura», da editora Feitoria dos Livros (Sintra): Fantasmagorias: Deambulando pelas ruas de Londres, de Virginia Woolf, com prefácio e tradução de Maria Etelvina Santos; e o ensaio de Rainer Maria Rilke sobre a colónia artística de Worpswede e a pintura de paisagens, com o título português Viagem Singular a Worpswede, que eu próprio traduzi e fiz acompanhar de um ensaio introdutório. A editora, Maria Rolim, abriu a sessão, e na conversa em torno deste do livro de Rilke participou ainda o pintor João Queiroz.
Transcrevo a seguir uma pequena parte dos textos prefaciais aos dois volumes, que poderão aguçar o apetite de interessados e potenciais leitores.
Este
poema diz, como tantos outros de Rilke, a solidão essencial do indivíduo
dividido entre o seu corpo e a imensidão do mundo.
[…]
Se dermos razão a Pessoa, viajar é
perder países porque as imagens idealizadas se desfazem quando a viagem se
concretiza na dureza do real. Mas
enquanto se perdem países, ou cidades, paradoxalmente, o mundo amplifica-se na
experiência que se ganha. A falha não estaria na perda ou na imobilidade, mas
na pobreza de experiência. Disto sabiam os modernos. Disto nos dá conta o texto
«Deambulando pelas ruas de Londres», de Virginia Woolf. Relato experiencial de
uma viagem tão enigmática quanto enriquecedora, a lógica deste texto parece ser
subvertida desde o início: o desejo irreprimível de comprar um simples lápis é,
afinal, um desejo de se perder pelas ruas, no meio da multidão, um desejo de
viagem enquanto busca de experiência e conhecimento interior; o lápis é apenas
o pretexto. Mas o que é um pretexto?
Quando a escrita do romance se começa a orientar, no início do século
XX, por uma lógica que não obedece apenas ao carácter sequencial da narrativa,
a cidade começa cada vez mais a mostrar-se em «frases vivas» (no dizer de
Virginia Woolf) e como um dos grandes temas, podendo alcançar estatuto de
personagem. Continuando o que o século XIX já iniciara — veja-se o caso de um
escritor como Charles Dickens e as descrições da cidade de Londres em alguns
dos seus romances —, as grandes metrópoles passam a merecer um desenvolvimento
e protagonismo literário que ainda não tinham alcançado.
«Basta o enigma...»
Rilke e as paisagens de Worpswede
Não importa quem és: à tarde irás sair
da sala que já sabes de cor; ao rés
do horizonte é a última a surgir
a tua casa: não importa quem és.
Com os teus olhos que, cansados, mal
se libertam da soleira pisada,
lentamente ergues a árvore negra, qual
marco contra o céu: esguia, isolada.
E assim criaste o grande, o imenso mundo,
como a palavra no silêncio a crescer.
E quando a tua vontade começa a entender,
teus olhos docemente o vão deixando…
(Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens)
A
árvore que, longe do mundo conhecido e seguro, se perfila no horizonte,
solitária em toda a sua estranheza tão familiar, é o enigma imperscrutável que
a palavra diz (no poema em epígrafe) ou a imagem mostra (nas pinturas dos
artistas de Worpswede, de que fala o texto de Rilke), sem com isso penetrarem
minimamente o seu mistério. Um dia, quando já julgamos ser sábios, uma espécie
de verdade precária parece soltar-se das coisas do mundo a que chamamos
«natureza» – mas é tarde de mais, uma vida inteira não chegará para conhecer o
Aberto que só o bicho vê, a criatura, talvez a criança, e que o olhar da arte
por vezes intui.
Rilke
sempre soube que assim era: neste texto de 1902, que pela primeira vez aqui é
dado a ler em português, como também nas mais tardias e conhecidas Elegias de Duíno, em particular na
oitava, onde, vinte anos mais tarde, lemos:
Com
todos os olhos vê a criatura
o
Aberto. Só os nossos olhos estão
como
que invertidos, fechando-se sobre ela
[...]
O
que fora de nós é, só o sabemos pela
face
do animal: desde pequena, levamos
a
criança a olhar para trás e obrigamo-la
a
ver a Forma, não o Aberto...
Estamos
no centro do tema que ocupa Rilke neste ensaio, o da relação, por contraste e
interdependência, entre Natureza e Paisagem. A natureza participa do Aberto,
mas não tem forma (porque a sua lei é a da metamorfose); a paisagem já não
conhece o Aberto, porque se tornou uma espécie de segunda natureza, de que
também a arte tende a aproximar-se.
Na
sua indagação sobre os enigmas daquilo que dá pelo nome de «natureza», Rilke
inicia uma estranha viagem pelos
trilhos de um reino hostil que «nada sabe de nós», nem quer saber,
impenetrável, e onde corre uma vida que não é a nossa.
Quando,
em Março de 1901 (e depois de duas estadas curtas, em Dezembro de 1898 e
Setembro de 1900), chega à colónia artística de Worpswede para aí permanecer
até Agosto de 1902, Rilke traz consigo as fortes impressões de uma natureza que
não será alheia ao seu interesse pela paisagem plana e pantanosa do Norte da
Alemanha: acabara de fazer, em 1899 e 1900, duas viagens à Rússia na companhia
de Lou Andreas-Salomé. Dessas viagens, em especial da segunda, que faz apenas
com Lou, entre Maio e Agosto de 1900, percorrendo centenas de quilómetros na
grande estepe russa a sul de Moscovo, traz Rilke duas experiências marcantes,
que certamente influenciaram também a sua atracção pelas paisagens e pela gente
da região do chamado «Pântano do Diabo»: a vastidão da grande planície russa e a veneração pela vida
simples dos camponeses que tem
ocasião de conhecer através de Tolstoi, que visita, com Lou, na sua propriedade
de Jasnaja Poljana. Aí (e nas próprias obras de Tolstoi, que lê antes, algumas
em russo) se terá apercebido dessa dimensão inapropriável das coisas grandes e
pequenas do mundo, planície e céu (respectivamente «a solidão e o gesto» da
grande natureza) por um lado, o rosto imutável dos camponeses e do mundo do
trabalho, por outro.
O
lugar que Rilke descobre mais de perto depois do regresso da Rússia – e onde
encontra aquela que se tornaria sua mulher em Abril de 1901, a escultora Clara
Westhoff, que fora discípula de Rodin em Paris –, esse lugar isolado, todo
voltado para o trabalho nos campos e no pântano, ganhara desde 1889 um outro
rosto, artístico, com a fixação, na pequena localidade de Worpswede, de um
grupo de pintores desencantados com a estreiteza das academias (e também de uma
pintora, Paula Becker, que haveria de ser, entre todos, aquela que mais
claramente anunciava a grande revolução expressionista). O pioneiro desse
núcleo artístico (que se manteve até hoje), o pintor Heinrich Vogeler, de
entre todos ainda o mais ligado ao estilo e aos temas do Simbolismo e da Arte
Nova (e que Rilke verá como o menos aberto e livre desses jovens «em devir»),
convidara já em Dezembro de 1898 Rilke a fazer uma primeira visita a esses
lugares. A viagem que aí se inicia, se continua pela Rússia de Tolstoi e pelo
problemático amor por Lou Andreas-Salomé, para regressar à estranheza da
planície pantanosa dos pintores de Worpswede, é uma viagem interior (como quase
sempre em Rilke – apesar das muitas viagens que faz por toda a Europa, da
Escandinávia à Espanha, da França à Rússia, dos muitos lugares e castelos do
Império Austro-Húngaro aos da Suíça e de Itália...), que leva o jovem autor à
tomada de consciência da natureza incognoscível das coisas, mas também de que a
arte será a única via que permite uma aproximação a esse mistério. Por esses
anos, estas ideias, que o ensaio sobre Worpswede elabora através de um triplo
olhar – analítico, em relação às
obras dos pintores do momento e do lugar, histórico,
quando evoca exemplos da pintura paisagística do passado, desde Rembrandt e
Ruisdael, e mesmo etnográfico,
quando, com a paisagem, se detém nas vida e nos lugares daqueles que a habitam
–, tais ideias irradiam também para a poesia que Rilke vai escrevendo, numa
unidade indissociável com os ensaios de prosa, sobretudo aquela que iremos
encontrar na segunda parte do Livro de
Horas («O livro das peregrinações», escrito entre 18 e 25 de Setembro de
1901 em Westerwede, a aldeia vizinha de Worpswede, onde vive depois do
casamento com Clara), e mais ainda n' O
Livro das Imagens, em alguns dos poemas escritos também aí em 1902, como
este, em que ecoam os temas de fundo do ensaio:
Cai a tarde
(Abend)
Lentamente muda a
tarde a roupagem
Que do renque de
árvores velhas sai;
tu olhas: e
acontece dos reinos a clivagem:
um que sobe para o
céu, outro que cai;
não pertencendo a
nenhum, irás ficar
não tão sombrio
como a casa em silêncio,
não tão seguro que
possas invocar
o eterno: a noite,
a estrela, o céu imenso___
e o que fica (o
enigma a descobrir)
é a tua vida: um
medo, um mundo, um fado
que cresce, ora
beco, ora luz a abrir,
e em ti oscila, entre pedra e céu
estrelado.
[…]
Prefácio
Ah! Como é
grande o mundo à luz dos candeeiros!
Baudelaire
Londres exerce sobre mim uma
atracção perpétua, um estímulo.
Virginia
Woolf
Tornei-me um instrumento
muito percutente, à entrada do mundo,
quer ele seja a cidade, a
espera, a secretária, a partida ou o regresso.
Maria
Gabriela Llansol
«Madrid,
Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!»
O
título acima, retirado de um verso do poeta Cesário Verde, faz-nos pensar numa
noção de viagem que ilusoriamente parece não andar longe do modo como muitos
dos chamados turistas desfilam hoje pelas capitais mais mediáticas, talvez já
não as mesmas referidas por Cesário, mas as cidades que são ditadas pela moda.
A mercadoria, que nesse mesmo século XIX se convertia cada vez mais em fetiche,
como já na época Baudelaire deixava escrito, transformaria a paisagem das
cidades que a ela foram sucumbindo cada vez mais. No entanto, apenas
percorrendo demoradamente a cidade de Lisboa a diferentes horas, Cesário sabia
viajar pelo mundo, pois muitos dos seus versos são paralelos aos de Baudelaire
ao percorrer as ruas de Paris, então a grande metrópole europeia. Sem sair da
cidade, ambos viajam, como no início do século XX fará Fernando Pessoa sem sair
da Rua dos Douradores, em Lisboa, ou através dos versos de Álvaro de Campos em
quem a vontade de partir é constante, sem conseguir largar o Cais das Colunas.
Confinados ou não à cidade, legaram-nos uma noção de viagem literária na qual
hoje nos seria muito útil pensar — a capacidade de, sem descurar o rigor descritivo
e a análise, fazer uso da imaginação e pô-la ao serviço do sonho, não para
fantasiar ilusões, mas para tornar possível o que o real não oferece e através
da imaginação pode ser criado. Não é a noção de entretenimento que serve ao
texto literário, mas a capacidade de produzir sonho e criar improváveis. A
literatura nunca serviu para outra coisa, senão para criar mundos.
[…]
Uma cidade não é apenas uma referência geográfica
assinalada num mapa. Uma cidade pode ser uma pausa no meio de um dia, um lugar
de passagem e de metamorfose, um tempo presente atravessado por memórias. A
cidade é um lugar, porque é encontro e experiência. É a presença do outro,
ainda que se caminhe só. É movimento e viagem. Mas também imobilidade activa.
Pode desenhar-se toda em cima de uma secretária, percorrer-se com os olhos,
fechar-se inteira dentro da mão; ou ser inabarcável durante toda uma vida.
[…]
Em 31 de Maio de 1928, Virginia Woolf anota no Diário: «Londres exerce
sobre mim uma atracção perpétua, um estímulo, oferece-me uma peça, uma
história, um poema, sem que eu me dê a maior trabalho do que mexer as minhas
duas pernas e caminhar pelas suas ruas». Entre esta página de Diário de 1928 e
a anterior, de 1918, passaram dez anos em que Virginia Woolf, com a cidade de
Londres sempre presente nos textos que escreve,
publica alguns dos seus romances mais emblemáticos, entre eles Mrs.
Dalloway, cuja personagem principal não é apenas Clarissa Dalloway, mas
também a própria cidade de Londres. Publicado em 1923, podemos considerá-lo
ainda hoje o seu romance mais londrino. Clarissa, a protagonista, percorre
muitas das ruas de Londres, referenciadas pelos seus nomes, pelas suas lojas,
por um quotidiano que, por certo, ainda hoje não deixa indiferente qualquer
visitante. Mas, neste romance, a cidade é ainda um grande políptico onde se
juntam personagens de vários tempos que, ao coexistir na memória afectiva de
Clarissa Dalloway, vão emergindo na tela por entre as ruas e os lugares como
paisagens da alma. A cidade de Londres, onde Virginia Woolf viveu durante quase
toda a sua vida, foi para ela um grande repositório de sinais; cidade que, por
um lado, a recolhe e se fecha sobre ela segregando um mundo interior e, ao
mesmo tempo, cidade que se abre, propiciadora de evasão e de construção de
pensamento, quer este se orientasse por caminhos mais ficcionais ou mais
ensaísticos. Em muitos dos seus romances, ou em textos mais ensaísticos e
interventivos como Um Quarto Que Seja Seu, de 1929, ou ainda em textos
breves aos quais é difícil atribuir um género específico, como este
«Deambulando pelas ruas de Londres», a cidade está sempre presente, como um
amigo que indiscutivelmente aceita o diálogo.
[…]
A personagem do romance moderno habita a cidade entre o real e a
fantasmagoria. Se, por um lado, aceita percorrer a cartografia rígida da cidade
e do seu quotidiano, por outro, não despreza o lado fantasmático que, para dar
um mero exemplo, a iluminação pública ainda titubeante envolve em neblina e
imprecisão. Entre o realismo e o visionário, a personagem põe ênfase na atenção
ao instante, na intensidade do olhar e na permeabilidade do sentir, originando
uma cartografia real e outra possível ou não visível, improvável portanto, na qual
a noção de tempo também sofre alterações. Passado, presente e futuro
interpenetram-se, ou são o eternamente presente. O tempo é indiscernível. A
memória toma novos entendimentos face ao transitório e ao contingente; e o
registo, a anotação, a descrição passam a ser os instrumentos do quotidiano. [ …]
Londres é pois, simultaneamente, matéria-prima, instrumento de registo e
suporte onde se gravam as palavras. É a cidade como matriz da escrita de
Virginia Woolf.
[…]
Maria Etelvina Santos
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