«QUARTA-FEIRA DE CINZAS»
Volto ainda a Eliot, e àquele seu poema «a meio da vida» (como outro célebre, de Hölderlin*), a que chamou «Quarta-feira de cinzas». Não estamos em quarta-feira de cinzas, mas o facto é que neste tempo borbulhante domina o cinza. Daí que me tenham vindo, novamente, ecos
do poema de Eliot, que tem muito a ver, na sua serena nostalgia e no seu olhar desencantado
sobre o mundo, «o conhecido reino», com o momento que atravessamos. Ou pelo
menos com o modo como eu vejo hoje este nosso momento (nosso? meu não é certamente!), tomando-o
pelo que ele é, mas procurando sempre os caminhos que levem à sua mudança, ao
fim desta interminável quarta-feira de cinzas em que vivemos mergulhados há
anos, para retomar o júbilo possível e a festa – sem o espectáculo ruidoso do
mundo. Esse «usual reign», esse mundo dos outros, distante e aqui tão perto,
era também o outro lado do muro do «jardim abismado» de uma poeta tão próxima
de Eliot como Emily Dickinson, e matéria
do seu desencanto, que compensava perdendo-se no êxtase da grande e da pequena
Natureza. Ou de Pessoa, ouvindo os ecos da «vida» do outro lado do «muro branco do quintal». Do outro lado desse outro lado está o «jardim abismático» de Llansol, onde também
habito mais hoje, aquele que permite o pensamento (ou vice-versa, para os que fazem
do pensamento a sua festa) e se inunda de luz, apesar de tudo e contra tudo…
Eliot revela-se assim, mais de meio século depois, uma voz do nosso próprio tempo, mais do que muitos dos que nesse rio se banham e nele se sentem em casa…
* Com suas pêras douradas inclina-se
E cheia de rosas bravas
A terra sobre o lago,
Vós, graciosos cisnes,
Ébrios de beijos
Mergulhais a cabeça
Na água sagrada, sóbria,
Ai de mim, aonde irei buscar,
Quando for Inverno, as flores, e onde
A luz do Sol,
E sombras da terra?
Mudos e frios erguem-se
Os muroas; na aragem
Rangem os cataventos.
«Ash Wednesday» na minha tradução e leitura:
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