09 abril, 2007



DA IMAGEM

Recupero anotações em bruto, cúmplices de um trabalho alheio em que a problemática da imagem devia ter lugar de destaque, e cruzo-as com a última leitura sobre esta matéria: as poucas, mas iluminadas, páginas de Giorgio Agamben sobre o fascínio dos espelhos e o mistério da imagem, em Profanações.

Espectros

À sombra da flor azul de Novalis (ela mesma imagem e símbolo de um estado e de um mundo outros) reuno algumas achegas imagéticas, que me foram chegando ao ler uma entrevista de José Bragança de Miranda na extinta revista LER, onde se trata a questão da «espectralidade» no século XIX e XX, de que a certa altura se fala a propósito de Marx, do anarquista Max Stirner e do aparecimento da fotografia, pela mesma altura. É um filão que pode ser interessante, quer para a imagem visual, quer para a literária, até pela raiz comum de espectro e espelho, que a minúcia filológica de Agamben põe em destaque. No capítulo de Profanações intitulado «O ser especial» (e esse ser especial, i.é., da espécie nos seus inúmeros estratos semânticos, com que nem sonhamos hoje, é a imagem) Agamben lembra que os filósofos medievais, fascinados pelos espelhos e pelas imagens que neles se reflectem, concluem que a imagem não é substância, mas acidente «que não se encontra no espelho como um lugar, mas, antes, como num sujeito», já que este estar num sujeito é «o modo de estar daquilo que é insubstancial», do que não é em-si e para-si, mas apenas para-outro: deste modo, e surpreendentemente, a imagem encontra-se com a experiência amorosa, e Dante pode definir o amor como «acidente em substância». Ou, diríamos, como imagem: amor sive imago.



A questão que Bragança de Miranda explora na sua tese de agregação sobre a «Fantasmagogia» é interessante, e suscita-me perguntas: Como se relacionam a imagem «auratizada» pela fotografia (pelo menos nos seus começos) e a pura «visão interior» suscitada pela imagem literária? E também: que relação estabelecer entre a imagem visual da fotografia (ausência presente, com um estatuto ontológico de espectralidade) e a imagem verbal (ausência ausente, sem estatuto ontológico, apenas mimético-representativo)? Até onde pode ir a «verdade» da imagem verbal? O que é? Mas: será a questão da verdade o que é importante no texto literário, ou antes a de uma verosimilhança (retórica), uma vez que se trata sempre de um jogo e de um sucedâneo do real?


Modernos e contemporâneos

Algumas reflexões modernas/contemporâneas sobre a imagem tomam consciência deste problema, ou das aporias que resultam da natureza intencional mas falaciosamente mimética da imagem fotográfica:
- Blanchot (L'espace littéraire) vê a imagem como lugar do vazio (e Atget já praticava a fotografia como mimésis à la mort, mortificação do modelo, «melancolia ao quadrado»);
- Para Sartre (L'imaginaire, 1940) a imagem é um invólucro do Nada, na medida em que não é o objecto, nem é ela própria, porque pretende afinal re-produzi-lo. Só se sai desta aporia quando a fotografia se emancipa, também ela, da função mimética (com o experimentalismo dos anos vinte);
- Barthes (A Câmara Clara), por seu lado, já vê as coisas de um modo diferente. Para ele, a fotografia não tem referente, não se distingue dele: «o referente adere»! (é útil a releitura d' A Câmara Clara, também pelo que me ocorre mais adiante sobre o punctum e a sua transposição para a literatura);
- Ernst Jünger (nos Diários) refere, numa visita a Lisboa, as fotos dos massacres em Angola, durante a guerra colonial, e vê a imagem fotográfica como um «congelamento» do real, e como uma forma de «reduzir» a sua violência (eu acho que na literatura é o contrário, ou melhor, não é isto que acontece: o que apazigua, porque faz «chantagem» com o real ao torná-lo abstracto, é a linguagem do conceito, não a da imagem, porque esta funciona como uma espécie de punctum no texto literário. Seria interessante ler o que Barthes diz sobre o <punctum na fotografia, e perguntar se há um punctum da imagem literária. A existir, ele estará, entre os contemporâneos, presente de uma forma intensa, recorrente e quase regorgitante, na obra de Maria Gabriela Llansol, em particular nesse húmus quase exclusivamente imagético, nesse «jardim que a imagem permite», que é o seu último livro, Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004 (Assírio & Alvim, 2006).


A força da imagem

Regresso a Bragança de Miranda: o que ele diz pode servir para o tratamento da imagem no texto literário, onde ela, por mais viva que seja, nunca será mais do que um fantasma da experiência; a diferença é que nalguns textos ela «sabe» disso, percebe que a sua «vida» só pode estar ali, no texto, e «adere», não ao referente, mas às suas próprias virtualidades energéticas, textuantemente vitais. É o que acontece no texto de Llansol. Bragança de Miranda diz: «procuro fazer da figura do fantasma uma categoria crítica para a experiência dos séculos XIX e XX». Com a fotografia, a imagem ganhou um mínimo de estatuto ontológico (deixou de ser fantasmagoria: é isso que Barthes também vê na fotografia); «ganhou uma existência em si, já não circula como simples reflexo, circula na experiência». No século XIX, o século dos fantasmas e da fotografia, os espectros parecem ganhar vida, no campo amplo da ideologia e da política, das artes e do literário. Mas o «salto» para um caso como exemplar como o de Llansol parece-me vir quando Bragança de Miranda lembra que o lugar do espectro (da imagem) num autor como o anarquista Max Stirner (cuja obra maior, O Único e a sua Propriedade, traduzi há tempos para a Antígona) é completamente diferente. O que diz de Stirner pode ser fulcral para entender o funcionamento da imagem no texto da M. G. Llansol: «…não é importante saber se o espectro [a imagem] é verdadeiro ou falso [como queria Marx, ou como quer o texto realista, diria Augusto Joaquim, escrevendo sobre Llansol], se existe ou não existe. A única pergunta que importa é se tem força ou não tem força»! E ainda: «Não estamos perante uma metáfora, mas estamos em presença de uma categoria essencial para a compreensão do mundo [do texto]»!


Hipotipose

A imagem que não é metáfora, que lança pontes, não para outras realidades da mesma esfera, mas antes para o inconsciente que salta do pormenor visível (e a que José Gil chama a «imagem-nua»: vd. A Imagem-nua e as Pequenas Percepções, Relógio d'Água, 1996), surge já nas retóricas antigas sob o nome de hipotipose. Kant define-a como «apresentação» (é esta a tradução de Darstellung na edição portuguesa da Crítica da Faculdade do Juízo: melhor seria dizer «presentação» ou mesmo «mostração», como o francês «monstration», numa tradução que Carlos Couto S. Costa (em Tópica Estética) cita de Eliane Escoubas (Imago Mundi, Galilée, 1986). O termo técnico usado ainda por Kant, subjectio sub adspectum, diz que esta figura do pensamento resulta da nossa necessidade de subsumir (subjectio) as intuições nos conceitos, de apresentar/mostrar o typos (marca, traço, vestígio, figura) sob a aparência (sub adspectum), ou seja, em sentido literal: «pôr debaixo dos olhos» aquilo a que, nos casos em que lidamos com «conceitos de entendimento puro», só se chega através daquela forma de intuição a que ele, Kant, dá o nome de «esquema» na teoria do conhecimento. O esquema é aqui uma espécie de activador ou catalizador da Versinnlichung (i. é, do acto de tornar sensível - sinnlich), no processo da hipotipose, daquilo que é de ordem conceptual (na tradução portuguesa chama-se a isto «sensificação», que não me parece a melhor solução, pela estranheza e artificialismo do termo). E depois desenvolvem-se os dois tipos de hipotipose, como se pode ler no§ 59 da «Crítica da Faculdade de Juízo Estética».
Carlos Couto S. Costa (nesse extraordinário e incomparável livro de «filosofia estética comparada» que é a Tópica Estética. Filosofia, Música, Pintura, IN-CM, 2001) cita outros autores franceses que por vezes dão imagens mais vivas da figura da hipotipose, por exemplo:
- «L'hypotypose peint les choses de manière si vive et énergique, qu'elle les met en quelque sorte sous les yeux, et fait d'un récit ou d'une déscription une image, un tableau, ou même une scène vivante.» (P. Fontanier, Les Figures du Discours, 1968);
- «L'hypotypose (demonstratio) est cette figure, telle que nous la trouvons dans la Rhétorique à Herennius, qui expose les choses d'une manière telle que l'affaire semble se dérouler et la chose se passer sous nos yeux.» (Quintiliano, Retórica [ad Herennius], Livro IV § 68; pode também encontrar-se a definição no clássico manual de Heinrich Lausberg).
A mim, no entanto, parece-me que a hipotipose pode ser vista como a forma racional, profana e passiva da epifania (= a manifestação, o aparecimento, do «mais alto» [επι: epi], i. é da divindade), que é de ordem transcendente, sagrada e activa. Mas isto nunca o li em nenhum filósofo!


Imagem, símbolo, alegoria

Noutros contextos, e a partir de uma perspectiva idealista, que privilegia uma visão global e sincrética das categorias de fenómeno, ideia e conceito (o Platão da República e do Banquete, o Goethe das Máximas e Reflexões e outras obras), a imagem assume um lugar central nos modos de apreensão simbólica do real. Já em Walter Benjamin – um herdeiro destes dois, mas que dá, na análise dos modernos, o salto do símbolo para a apreensão alegórica, disjuntiva e dialecticamente imagética do real – a imagem não é servidora de qualquer «esquema» do conhecimento, mas matéria estruturante do próprio «pensamento imagético».
O «esquema» de Goethe é mais ou menos o seguinte:
No símbolo, fenómeno, ideia e imagem articulam-se num encadeamento que resulta numa realidade que, por definição e essência, é «indizível». Na alegoria, fenómeno, conceito e imagem manifestam-se, em dissonância, no dizível da imagem (por isso Goethe se decide ainda pelo símbolo). Para ele, o símbolo «lança para além de» (como diz a etimologia), formando os vários níveis – fenómeno, ideia, imagem – uma unidade (síntese dedutiva). Aqui, a imagem funde-se, em simbiose, com a ideia. O objecto domina e assimila a si a ideia («resolve-se» nela). O símbolo é manifestação do indizível porque no particular descobre (desencobre) o universal, como «necessidade» (é isto o próprio da poesia para Goethe).
A alegoria, dizendo outra coisa, faz entrar em tensão objecto e imagem, cria uma disjunção arbitrária (é analítica, indutiva). Aqui, a imagem é figuração, serve uma construção abstracta. Domina o conceito abstracto que não constitui unidade com o objecto. A alegoria é manifestação do dizível porque se constrói na representação e procura um particular para o universal, como exemplum.

Por isso Benjamin, ao estudar a arte romântica em O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, explica como é na «Ideia», e não na imagem, que cabe a noção de arte dos primeiros românticos: «A categoria em que os Românticos incluem a arte é a da Ideia. A Ideia é a expressão da infinitude da arte e da sua unidade, pois a unidade romântica é uma infinitude. Tudo o que os Românticos dizem sobre a essência da arte é um modo de determinação da sua Ideia, entre os quais se conta a forma, que, na sua dialéctica de auto-limitação e auto-elevação dá expressão à dialéctica de unidade e infinitude na Ideia» (Cap. «A teoria da arte do primeiro Romantismo e Goethe»).
Já n' O Livro das Passagens, todo centrado no mundo moderno e na sua configuração na poesia de Baudelaire, aparece uma daquelas frases lapidares do «pensamento imagético» de Benjamin (uma «imagem dialéctica») que me parece servir mais uma forma de pensamento concreto (apesar de usar «ideia» ainda no sentido corrente, platónico-goethiano, do termo). Diz apenas: «… Mais do que uma ideia, o eterno é apenas uma prega no vestido». (Passagen-Werk, N 3,2).
E imediatamente antes há outro fragmento que dá uma clara definição daquilo que, para Benjamin, se deve entender por «imagem» (dialéctica e de implicações não apenas espaciais, mas espacio-temporais):
«… Imagem é aquela realidade na qual o que foi se encontra com o Agora, formando uma constelação fulminante. Por outras palavras: imagem é a dialéctica em repouso. De facto, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a relação do que foi com o Agora é dialéctica: a sua natureza não é temporal, mas imagética. Só as imagens dialécticas são imagens autenticamente históricas, i. e., não arcaicas. A imagem lida, que o mesmo é dizer a imagem no Agora da sua possibilidade de ser conhecida, traz consigo, em alto grau, a marca do momento crítico e de perigo subjacente a toda a leitura». [N 3, 1]


(Fotos de nuvens: © Vina Santos)

Sem comentários: