20 fevereiro, 2007



A LÍNGUA – ONTEM COMO HOJE

Em 2000, não sei já a que pretexto, fui fazer uma conferência sobre a língua portuguesa ao Luxemburgo. Escolhi o fio condutor dos poetas e daquilo que muitos deles, desde Pessoa, têm escrito sobre ela. Vejo hoje a língua por aí maltratada e desprezada, e ao folhear o caderninho desse ano constato, pelo que recolhi de poetas desde Jorge de Sena e O'Neill, que as coisas não eram muito melhores há trinta anos. Mas também que a nossa relação com a língua, contrariamente ao que se passa com outras, é pacífica e aproblemática. Como quase tudo, afinal, neste pacato rectângulo avesso a traumas.
Respigo uma passagem desse caderno, e transcrevo um impagável e revelador soneto de Natália Correia.


«A nossa condição nunca foi trágica. Os poetas portugueses, mesmo quando mergulham no fel da sátira ou no pântano do desencanto em relação ao estado da língua - que é sempre metonímia deste nosso "país relativo" (O' Neill) - esses poetas, de Alexandre O'Neill a Jorge de Sena e de Armando Silva Carvalho a Vasco Graça Moura, têm com ela, apesar de tudo, uma relação feliz ou, pelo menos, conciliadora, e não trágica. Porque é nos poetas que a língua está "a salvo", como não pode estar por exemplo num poeta apátrida e judeu como Paul Celan, por melhor que ele a conheça e por mais que a ame. Quando Graça Moura escreve "mas apesar de tudo ainda és nossa, / e crescemos em ti (...)", está, com isso, a transformar a língua, não apenas em casa ou varanda para o mundo, mas numa espécie de útero, no que de mais íntimo e próprio existe em cada um de nós: uma raiz, um fundo identitário que, no caso português, é estável e inequívoco. O mesmo não podem dizer outros. Citei o caso, esse sim trágico, de Paul Celan, judeu romeno, escrevendo em alemão, exilado em Paris e do mundo, do qual se despede cedo. Não pode imaginar-se maior contraste com os nossos poetas, cujos "lamentos" pela língua portuguesa não vão além da elegia mais ou menos conformada, jocosa e sem consequências - mesmo quando se reconhece que a língua pouco mais é que "a miséria das palavras" (Jorge de Sena), "spray linguístico" (Armando Silva Carvalho), "mater dolorosa" (Natália Correia), "refugo e cicatriz" (Vasco Graça Moura), "impostura" (Maria Gabriela Llansol), "vocábulos de sílica, aspereza" (Carlos de Oliveira) ou "animais doentes, as palavras" (A. O'Neill)».



Língua mater dolorosa [1976]

Tu, que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luiz Vaz a chama joalhada

tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,

eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.

Já na glote és cascalho és malho és míngua,
de brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca.

(Natália Correia: Poesia Completa, 1999)

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