22 fevereiro, 2007


A FLOR



Que faz o olhar de um pensador crítico, «sério» e radical como o de Walter Benjamin – que estamos mais acostumados a ver pousar sobre livros e apontamentos – quando interroga uma florzinha colhida no parque da abadia de Pontigny em 1938? A fotógrafa, Germaine Krull, fixou-o em plena experiência aurática, uma forma de relação com o mundo cuja perda Benjamin constata nas sociedades contemporâneas dominadas pela informação, nestes finais da década de trinta, em que se ocupa quase exclusivamente do grande projecto inacabado das «Passagens de Paris».
Benjamin está, nesta fotografia, numa pausa do pensar. Ou praticando uma forma-outra do pensar, pensando com o olhar. Isto terá provavelmente acontecido com outros, suas almas gémeas no culto do delicado e do fracasso – Pessoa, Kafka, Robert Walser. Ou também, imagino, nas selvas da Bolívia, com essa outra figura radical e heterodoxa que agora se cruza em mim com a de Benjamin: Che Guevara, de quem o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger (no livro Mausoléu. A história do progresso em trinta e sete baladas, Cotovia, 2004), escreve:

... Um rapazinho tímido,
alérgico, muitas vezes quase a sufocar.
Em luta com o seu corpo,
fumando charutos, fez-se homem
(o que isso seja, não é história para aqui).
[...]
Por toda a parte bufos,
intrigas que nunca conseguiu entender.
Um eterno estrangeiro.
[...]
No fundo,
uma mimosa: a sua leitura preferida eram poemas
(sabia Baudelaire de cor).
Fraco e delicado, os serviços secretos chamavam-lhe um figo...


Talvez o traço mais significativo da leitura, por Benjamin, de uma modernidade alargada, que vem de Baudelaire e chega até hoje, seja a de uma experiência do tempo que cada vez mais foi liquidando a capacidade dos sujeitos (no contexto da realidade urbana, a única no mundo globalizado, pelo menos em termos do seu espírito) de retribuir o olhar, ou de restituição do resto inassimilável que existe nas coisas que nos olham. Esse resto é o rasto ou vestígio daquilo a que Benjamin chama beleza. E a experiência que possibilita o acesso a ela na intuição é a experiência da aura.
São inúmeras as passagens, nos ensaios e fragmentos sobre Baudelaire, o cinema, a fotografia, em que esta experiência é descrita nestes termos. Eis algumas delas:

… no olhar vive a expectativa de ser correspondido por aquele a quem ele se oferece. Quando essa expectativa é correspondida (e, no pensamento, ela tanto pode aplicar-se a um olhar intencional da atenção como ao olhar puro e simples), o olhar vive plenamente a experiência da aura. «A capacidade de percepção é uma forma de atenção», escreve Novalis. Esta capacidade de percepção não é outra senão a da aura. A experiência da aura assenta, assim, na transposição de uma forma de reacção corrente na sociedade humana para a relação do mundo inerte ou da natureza com o homem. Aquele que é olhado, ou se julga olhado, levanta os olhos. Ter a experiência da aura de um fenómeno significa dotá-lo da capacidade de retribuir o olhar. (p. 142)
Um conceito de aura: «o aparecimento único de algo distante». Esta definição tem a vantagem de tornar transparente o carácter de culto do fenómeno. O essencialmente distante é o inacessível. De facto, a inacessibilidade é uma qualidade fundamental da imagem de culto). Não será preciso ressaltar que Proust conhecia muito bem o problema da aura. É notável o modo como ele por vezes o aflora com conceitos
que contêm em si a teoria da aura: «Alguns amantes de mistérios sentem-se lisonjeados pelo facto de permanecerem nas coisas vestígios dos olhares que um dia sobre elas pousaram.» (Portanto, certamente aquela capacidade de os retribuírem.)
A definição que Valéry dá da percepção no sonho, vendo-a como aurática: «Quando digo: estou a ver aquilo ali, isso não significa que tenha sido estabelecida uma equação entre mim e a coisa… Mas no sonho está presente uma equação. As coisas que eu vejo vêem-me, tal como eu as vejo a elas.» (p. 143)
Explicação dedutiva da aura como projecção de uma experiência social (entre pessoas) na natureza: o olhar é retribuído. (p. 165)

O silêncio como aura. Maeterlinck leva a limites inconcebíveis o desenvolvimento do aurático. (p. 170)

Conceito de aura aplicado a objectos da natureza. Podemos defini-la como o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja. Seguir com o olhar uma cadeia de montanhas no horizonte ou um ramo de árvore que deita sobre nós a sua sombra, ao descansarmos numa tarde de Verão – isto é respirar a aura dessas montanhas, desse ramo. Pegando nesta descrição, é fácil compreender o condicionalismo
social da actual decadência da aura. Baseia-se em duas circunstâncias, que têm a ver com o significado crescente das massas na vida actual. (p. 213)


(Walter Benjamin, A Modernidade. Obras Escolhidas, vol. 3. Assírio & Alvim, 2006)

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