25 janeiro, 2007


SETAS NO CORAÇÃO DO DIA

Rua de Sentido Único abre com um texto tipicamente benjaminiano: como que movida por um voluntarismo provocatório, a mão que escreve lança à cara do leitor um paradoxo: nas circunstâncias e na atmosfera social dos anos vinte, «a autêntica actividade literária não pode ter a pretensão de se desenvolver num âmbito estritamente literário» – isso significaria a sua «esterilidade».


Benjamin acabara de encontrar o marxismo através de Asja Lacis, de Lukács, de Brecht. E vê-se obrigado, para garantir a subsistência (e um casamento em crise, com Dora Benjamin, de quem se separa no fim da década), a fazer uma viragem de 180 graus nas formas de escrita que praticara até aí: a tese académica e o ensaio de reflexão dão lugar à crónica jornalística, uma forma de escrita «com lampejos de uma luz demasiado crua», semeada aqui e ali de «ervas amargas, das que agora cultivo com paixão na minha horta», como se lê numa carta à amiga Jula Cohn. Mas, nas mãos de Benjamin, até este género, tão preso a uma «actualidade» circunstancial, se transforma: cada pequeno texto é ainda uma «seta no coração do dia», como se lê num deles, mas a escrita continua a fazer-se de forma extremamente subtil e sem abdicar daquele registo enigmático e velado que é sempre o seu, nem de formas de escrita «surrealista» em que o sonho, ou o que um título de 1927 designa de «kitsch onírico», têm lugar de honra –– apesar de os tempos não irem para «flores azuis», como aí se diz: «Hoje, os sonhos não são já os da Flor Azul. Quem hoje acordar julgando ser um Heinrich von Ofterdingen, é mais que certo que se deixou dormir.»



E depois há as peças aforísticas, algumas verdadeiros achados, pequenas obras-primas do género. A minha preferida surge logo no início de Rua de Sentido Único, e é o mais curto texto deste livro, certamente o mais breve texto de Benjamin. Diz apenas (mas a frase alemã não é de sentido único, abre-se antes a um curioso duplo sentido): «Für Männer: Überzeugen ist unfruchtbar.» Em português: «Para homens», e depois duas vias:
1) «Convencer é estéril.»
2) «Procriar em excesso é estéril.»
Nela se cruzam dois sentidos de Über-zeugen, em que práticas de linguagem (retóricas) e práticas sexuais são vistas em analogia. O paradoxo de uma procriação estéril esclarece-se se a colocarmos ao nível de uma retórica da mera persuasão, calculista, orientada e violenta. Dela está ausente, como da sexualidade procriativa, o momento erótico, a sedução da palavra livre e criativa.


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