26 janeiro, 2007



Há autores que, escrevendo como todos ao ritmo dos dias e para um tempo determinado, de facto falam sempre mais das chamadas «últimas coisas». A expressão vem da teologia medieval e passou para a metafísica, mas não é dessas quatro imagens do Além (a Morte, o Juízo Final, o Céu e o Inferno) que se trata em livros como aqueles que hoje refiro, que não se ocupam do que está do outro lado do mundo e da experiência, e nos quais a expressão terá sobretudo a ver com a força da imanência e a presença de coisas elementares. No entanto, talvez por já quase não saber ler, o seu próprio tempo, que não sabe de outros tempos que não sejam o imediato, tende a ignorá-los. A discrição de quem assim escreve também não permite que se torne um best-seller – estes autores, que respiram ao ritmo do grande tempo, e não de dias e meses, não têm a mínima vocação para «bestas céleres», como lhes chamaria Alexandre O'Neill –, e as editoras e colecções onde aparecem, as mais das vezes meteoricamente, também não contribuem para lhes dar grande visibilidade. É da natureza da coisa.
Pense-se em autores que se voltaram para estas «últimas coisas» da existência e do homem, e vamos inevitavelmente dar a nomes radicais, inclassificáveis, de um passado mais ou menos próximo. Podíamos lembrar, entre muitos, os austro-húngaros Otto Weininger (autor de uma última obra filosófica, em parte aforística, com o título Das Últimas Coisas) e Carlo Michelstädter, Cioran ou Ernst Jünger, Maria Gabriela Llansol ou o próprio Spinoza, marginal da filosofia e autor de uma Ética que se rege pela imanência das últimas coisas, ou pelos sentidos últimos da imanência.
Ao deixar o pensamento deambular por estes atalhos, constato que há livros que tenho debaixo de olho, que ficam à vista e à mão por muito tempo, e dos quais acabo por não falar, apesar de escrever com alguma regularidade sobre livros e autores. Esses esperam sem ansiedade que lhes seja dada a devida atenção – o que acontece com frequência, mas sem que necessariamente isso se transforme em pensamento escrito em que eles sejam as estrelas do dia. Tenho alguns desses livros por companhia, livros que, sendo muito diferentes uns dos outros, me falam todos de últimas coisas. Entre os mais recentes há alguns, de três autores a quem já me tenho referido a propósito de outras obras, e que escrevem sobre o que há de mais definitivo e menos circunstancial. E por isso parecem silenciar o tempo em que vivemos, e o apelo à «actualidade» que sobretudo o jornal tantas vezes exige. Nesta página, porém, sempre considerei igualmente actual o que, sendo de ontem, actua sobre mim hoje e me transforma. E também no caso destes livros, que comigo convivem desde que os recebi, tudo lembra a este nosso tempo o que ele não é, tocando deste modo, ex negativo, o próprio cerne do tempo em que vivemos.
Falo de António Vieira (e das suas Improvisações sobre a Ideia de Deus, & etc., 2005, que se seguiu a essa brilhante analítica de um tempo amorfo que foi o Ensaio sobre o Termo da História), de Carlos Couto Sequeira Costa (do livro de poemas a deus, Fenda, 2004, e também de Vedutismo, Pé de Página, 2005) e de Jaime Rocha (e desse raro livro de poesia intitulado Lacrimatória, Relógio d'Água, 2005). Todos eles, de modos diversos e em dois campos que, na forma em que se apresentam nestes livros, se tocam e são complementares – a poesia e a filosofia, o poema e o fragmento –, indagam os fundos mais fundos do Ser e do ser humano, do seu existir e do seu fazer, com linguagens e discursos que fogem a qualquer taxonomia fácil. Porque são discursos do «entre»: entre o récit primordial e o poema (em Jaime Rocha), entre o tratado e o aforismo (em António Vieira), entre o sistema e a sua subversão pela reinvenção da linguagem da filosofia e da poesia, no caso de Carlos Couto S. C., autor de obras feitas de janelas, perspectivas, passagens, com-parações (paragens para deixar dialogar domínios que a doxa pensa que se excluem), corredores que abrem para múltiplas e imprevisíveis salas. Carlos Couto S. C. – mas também os outros dois autores que aqui o acompanham, que cruzam em formas heterodoxas de poesia e pensamento a imaginação, o rigor da dicção e da ideia, o substrato narrativo arcaico e a tensão dramática – é um corredor de fundo nestas linguagens híbridas e vivas, nunca acomodadas, que escreve, quer uma tese académica (Tópica Estética), quer um livro de poesia (a deus, livro último e único para o autor) ou de ensaios, a-típicos ensaios que, no entanto, são o mais (in)acabado exemplo desta forma de escrita vibrátil e aberta, como quem percorre um campo de experimentação numa vadiagem do pensamento que nunca se perde, porque está sempre de olho no que é «último» e essencial, sendo, como tudo, circunstancial e relativo – em especial a pulsação viva e a face estética do mundo.
«A arte é o prazer de pensar», escreve Carlos Couto S. C. em Vedutismo, querendo dizer com isso que filosofia e arte se situam no prolongamento uma da outra, que toda a filosofia é estética. A especulação rigorosa de António Vieira sobre a ideia de Deus sugere que a «coisa» não é vão cenário do mundo, dominado por uma «antropomania» e por um «bloco religioso» que já Spinoza denuncia como redutores. E Jaime Rocha propõe (nos três últimos livros de poesia, que constituem uma clara trilogia, com figuras e motivos a passarem de uns para outros: Do Extermínio, Zona de Caça e Lacrimatória) uma visão do corpo e da morte (e da vida/do sexo), do que há de elementar no humano, como se de um sonho da natureza última do homem se tratasse, aquela que se perdeu, mas está nele.
Sem o saberem, estes três encontram-se na minha mesa e falam comigo sobre últimas coisas. Descubro agora, ao escrever, que somos todos de algum modo «espinosistas», na busca de graus de conhecimento próximos de uma essência que é da ordem da mais pura imanência: «o mundo está cheio de / vírgulas e reticências, / membranas e linguagem / mas // não duvides da Vida nem / da Terra…». Porque «a Terra mora ao lado / e não treme.» (Carlos Couto S. C., a deus). E porque as últimas coisas, sabemo-lo, são sempre, primeiras. Confirmo-o no pequeno poema do alemão Hans Arnfried Astel, que descubro já depois de escrita esta crónica, e que se intitula precisamente «Últimas coisas»: «Uma última borboleta pousa nas sécias em botão / sob os últimos raios do sol da tarde. / No momento em que escrevo, voou para casa / antes de o Sol se pôr atrás do monte. /Agora, sou o último aqui, e tomo notas / no meu caderno sobre as últimas coisas.»
(Hoje no «Mil Folhas» do Público)


Anselm Kiefer, Escada para o céu (1991)

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