30 dezembro, 2014

O LUNAPARQUE DA LITERATURA
visto por Walter Benjamin


Ao cabo de quatro anos de interrupção, devida à mudança da Assírio & Alvim para o grupo Porto Editora, a edição das Obras de Walter Benjamin vai finalmente ser retomada em 2015, na mesma chancela. O próximo volume, o quinto desta edição portuguesa, reune textos conhecidos (como «A tarefa do tradutor» ou «O contador de histórias»), mas também muitos fragmentos raramente divulgados nas traduções de Benjamin, sobre teoria e filosofia da Linguagem, da Tradução e da Literatura (ou da sua crítica).
Um dos conjuntos de fragmentos, sobre teoria e crítica literárias, é de uma flagrante actualidade no que se refere aos caminhos de uma boa parte da literatura e da crítica (nomeadamente da crítica jornalística) nos agitados e decisivos anos entre as duas Guerras do século passado (os tempos pós-modernistas da chamada «Nova objectividade») e nos nossos próprios dias, em que o objecto da literatura e da crítica se desloca tantas vezes para o culto da personalidade, o fait divers mundano ou o puro comércio.
Para assinalar a continuidade da edição, dou a conhecer, em jeito de pré-publicação, alguns desses fragmentos sobre literatura e crítica em que Benjamin não poupa o seu tempo e as suas práticas, nem à esquerda nem à direita, e se revela implacável com uma situação epocal e cultural dominada por essa pretensa «objectividade» sem objectivo (i. é, sem «programa») e por uma voga anti-teórica no jornalismo cultural e na própria literatura dita «política» (i. é, burguesa de esquerda ou marxista), e atravessada por muitas contradições. Não sendo essas contradições as mesmas de hoje, nem estando este nosso tempo consciente das suas, os paralelos tornam-se evidentes quando lemos alguns destes esboços de uma crítica da crítica e de dissecação da literatura por Benjamin. Muitas vezes, mais não será preciso do que introduzir uma ligeira variante: onde se lê «alemão», leia-se «português», onde se lê «a nova objectividade» alemã, leia-se por exemplo «a nova ordem do espaço literário» português, ou mudem-se os nomes dos prémios. Depois, basta ler as secções de crítica (se as encontrarmos), as reportagens e entrevistas dos nossos jornais, para se confirmar como Benjamin, sem o imaginar, estava a falar de nós.

CONSELHO AOS MECENAS (1929)
O baixo nível a que chegou a crítica literária alemã não é segredo para ninguém. Mas as razões que o explicam talvez sejam. Entre elas destaca-se a falta de camaradagem, de espírito de oposição, a falta de uma clareza nas relações dos que escrevem uns com os outros. Daí a marca espantosamente incaracterística das nossas tendências literárias e dos seus representantes, e a triste dignidade de uma crítica que mais não é do que a expressão do horizonte limitado e abafado em que é praticada. O humor precisa de liberdade de acção e espaço para respirar. Um mecenas inteligente que queira ajudar a literatura alemã terá de desistir de encontrar novos talentos. De lançar novos laureados com os prémios Kleist ou Schiller. Em vez disso, que pense bem na seguinte sugestão: construir o lunaparque da literatura alemã. O terreno não precisa de ser muito grande, mas as suas possibilidades são ilimitadas...
Depois da cerimónia inaugural, um coro avança e diz mais ou menos o seguinte: «Nada que valha a pena.» 



PERFIL DA NOVA GERAÇÃO (1930)
Enquanto os escritores avançam, alegres e contentes, de um livro para outro, nós não conseguimos ver onde existe no seu trabalho uma evolução, e acima de tudo onde existe algo de estável, a não ser no aspecto técnico. O seu esforço e a sua ambição parecem esgotar-se em arranjar uma matéria nova, um tema que agrade, e é tudo. 
Sempre existiu literatura de entretenimento – quero dizer, uma literatura que nunca assumiu qualquer forma de compromisso com o seu tempo e com as ideias que o movem, a não ser talvez o de propor o consumo dessas ideias numa forma agradável, confeccionada de acordo com o estilo da moda. Essa literatura de consumo tem direito à existência, e sempre encontrou o seu lugar e a sua legitimidade, pelo menos na sociedade burguesa. Mas aquilo que nunca aconteceu, nem na sociedade burguesa nem em qualquer outra, foi uma situação em que essa literatura de puro consumo e entretenimento fosse identificada com uma vanguarda... 


A TAREFA DA CRÍTICA (1931) 
Sobre a tremenda ilusão que é pensar que o factor determinante para se ser crítico é ter «opinião própria». De nada serve conhecer a opinião de alguém que não se conhece – sobre o que quer que seja. Quanto mais importante for um crítico, tanto mais a pura opinião pessoal será um caso de excepção, tanto mais o ponto de vista absorverá a opinião. Pelo contrário, o grande crítico será aquele que, através da sua crítica, dá aos outros a possibilidade de formar uma opinião sobre a obra, em vez de ser ele a dá-la. Este traço da figura do crítico não deve, porém, ser privado, deve antes ser uma determinação objectiva e estratégica. De um crítico deve saber-se o que ele defende, e ele deve dar a conhecer a sua tendência. [...] 
No verdadeiro crítico o juízo propriamente dito é o último a que ele chega, e nunca a base do seu trabalho crítico. A situação ideal é aquela em que ele se esquece de emitir um juízo. 


FALSA CRÍTICA (1930-31)
Não será essencial, ou mesmo útil, para a crítica orientar-se sempre explicitamente por ideias políticas. Mas isso é absolutamente necessário para a crítica polémica. Quanto mais pormenorizada for a imagem pessoal que avança para primeiro plano, tanto mais terá de haver um consenso entre o crítico e o seu público sobre a película, a imagem do tempo que lhe serve de pano de fundo. Mas toda a autêntica imagem de época é política. E a miséria crítica da Alemanha vem-lhe do facto de a estratégia política, mesmo no caso extremo do comunismo, não coincidir com a literária. É o destino fatal do pensamento crítico, e talvez também do político.
... A mera objectividade crítica, que, caso a caso e sem segundas intenções, não tem nada a dizer para além do seu juízo particular, acaba sempre por ser desinteressante. Esta «objectividade» mais não é do que o reverso da ausência de perspectivas e de directivas de uma prática de recensão com que o jornalismo aniquilou a crítica.
O que é próprio desta objectividade, a que se poderia chamar nova, mas também desprovida de consciência, é que nos seus produtos, em última análise, a bona fides vai sempre dar à reacção «temperamental» da figura original de um crítico. Esta criatura, cândida e despreconceituada, de que a crítica burguesa tanto se ufana, na verdade é apenas a expressão do zelo servil com que o jornalista cultural satisfaz a sua necessidade de figuras marcantes, temperamentos fortes, génios originais e personalidades. A honestidade desta estirpe de crítico é puro fogo de artifício; e quando mais fundo for o tom de convicção, tanto mais fétido é o seu hálito.  
Nada diz mais sobre o nosso meio literário do que as suas tentativas de alcançar os maiores resultados com o menor investimento. O acaso jornalístico veio substituir a responsabilidade literária. É absurdo o modo como os literatos da «Nova Objectividade» exigem repercussão política sem investimento pessoal. Este investimento pode ser prático, e consistir numa actividade político-partidária disciplinada; e pode ser literário, através da exposição da vida privada, de uma intervenção polémica generalizada, como acontece com o Surrealismo em França e com Karl Kraus no espaço alemão. Os literatos de esquerda não fazem nem uma coisa, nem outra. E temos de desistir de concorrer com eles na luta por um programa de «literatura política». Porque quem se aproxima do carácter mediador, e mais ainda do efeito de mediação da escrita burguesa séria, terá de reconhecer que aí se diluem as diferenças entre a literatura política e a apolítica. E que aparecem de forma mais nítida as diferenças entre a literatice oportunista e a radical. 

PARA UMA CRÍTICA DA «NOVA OBJECTIVIDADE» (1930-31)
Já é altura de tomarmos consciência de que o tão afamado recurso aos factos tem, na verdade, duas frentes. Por um lado, combate a ficção estranha à realidade, as «belas-letras», e por outro lado insurge-se contra a teoria. É o que nos mostra a experiência. Nunca, como hoje, uma geração de jovens escritores mostrou tanto desinteresse pela legitimação teórica  do seu prestígio. Tudo o que vá para além de uma argumentatio ad hominem já está fora dos seus horizontes. Como poderia ela chegar a um esclarecimento teórico das suas posições, se essas posições estão voltadas para dentro e excluem em si mesmas todo e qualquer ponto de vista mais lúcido?  




Muito característico da crítica de hoje: quase nunca compromete mais um autor do que quando elogia. O que estaria em ordem, se ela não elogiasse precisamente o que é menos meritório. 

Neste território tudo assenta numa certeza: a de que ninguém irá estragar o jogo de ninguém.
 
 




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