19 agosto, 2007


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O cemitério central



Passei uma tarde rodeado de kitsch, de muita pompa e de alguma circunspecção (exemplos: o mausoléu dos Wittgenstein ou o túmulo de Arnold Schönberg) nesta cidade dos mortos, gigantesca e tratada com uma limpeza e um saber urbanístico que suplanta em muito o do mundo dos vivos – com as suas alamedas bem tratadas, os vários sectores urbanos dispostos com critério, uma cuidada atenção à igualdade de tratamento (há um cemitério budista moderníssimo, e um cemitério judeu antigo, e mal tratado, hélas!), uma bela igreja anunciadora da Arte Nova de 1900, com uma cúpula impressionante pintada em azul de Giotto, e até um «Parque do sossego e da força» para carregar baterias depois de longas caminhadas...
Mas de tudo isso, e de muito mais, fala melhor a minha amiga «viscondessa Amélia de Sousa Carvalho» , aliás Ilse Pollack, em «carta a um seu amigo do Porto» (que sabemos ser o jornalista e poeta J. Viale Moutinho):


«Meu caro!
Aqui estou eu na tua cidade da morte, ou melhor, na cidade dos mortos. Tu, que só os conheces de postais ilustrados, achas que eles são divertidos. Já eu, podes crer, acho que os vivos, esses é que são "uns mortos", mas raramente tão interessantes como os Vienenses desejariam que eles fossem.
[...]
Bonjour, monsieur! Hoje começo a minha ronda dos mortos num táxi. O tempo está esplêndido, e por isso decido fazer uma saída para o verde, mas o taxista pergunta logo: Já esteve na Cripta dos Capuchinhos? É aí que estão os restos dos grandes da família imperial austríaca. Com o cérebro desfeito, mas isso já ninguém pode verificar, tanto tempo depois. Quer que espere?, pergunta ainda.
E eu: Não, obrigada, ia ficar à espera muito tempo.
E ele: Mas porquê? O que é que se pode fazer tanto tempo num cemitério?
Fotografias, respondo eu logo, embora não seja japonesa.
E ele, com um alívio estudado: Ah, bom, já começava a pensar que se queria juntar a eles.


O cemitério principal de Viena: ao que dizem, uma verdadeira cidade. Nas várias entradas pode comprar-se uma planta, a planta da cidade dos mortos, mas só os monumentos mais famosos estão assinalados, os mausoléus de actores e compositores, de mestres de capela e poetas, de políticos e inventores. Não necessariamente por esta ordem, mas sempre dispostos de tal modo que os mortos célebres, mesmo debaixo da terra, se mostrem a uma luz pública.
Os estrangeiros procuram todos em primeiro lugar o túmulo de Beethoven. O vienense conversa horas a fio com os seus sobre as celebridades aqui enterradas. Sobretudo aquelas que ele ainda conheceu, porque isso lhe dá um gozo muito especial, o de estar vivo e poder passear por cima delas.
Coisa estranha, como tudo gira à volta destes mausoléus comemorativos, enquanto outras partes da cidade estão completamente votadas ao abandono. Os columbários, por exemplo, ou as criptas das arcadas. [...]


Filhos agradecidos dedicam aos queridos pais um tríptico de cenas burguesas domésticas; ao lado, um busto masculino, de bigodes, paira sobre duas figuras de mulher, gaudendo et agitando. Um a delas decentemente vestida, a outra de peito cheio à mostra – e, apesar disso, ambas têm estampada no rosto a mesma expressão de sofrimento. De resto, parece que as preferências locais vão para as mulheres não aladas, mais do que para os austeros anjos negros da morte... [...]


Não sei como a cidade se comporta para com os vivos, mas com os mortos tem uma relação verdadeiramente cosmopolita: Sérvios caídos nas guerras com os Turcos descansam ao lado de Franceses da época napoleónica, antifascistas polacos ao lado de Austríacos vítimas do dever.
Quem se aventurar por estes caminhos a pé, é melhor levar farnel, porque ninguém se lembrou das necessidades vitais dos vivos. Os descendentes têm a vida facilitada se a campa que visitam fica encostada a uma rua transitável. Ali está um homem que remove as folhas acumuladas sobre a pedra, com pá e vassourinha, enquanto a mulher faz malha no carro. Deve ter a sogra ali enterrada. Duas campas mais abaixo, alguém tira um aspirador da mala do carro – perdoai-lhes, queridos mortos, que eles não sabem o que fazem!»

(De: Ilse Pollack, Mundos de Fronteira. Lugares e figuras da Europa Central. Lisboa, Livros Cotovia, 2000)


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